Tuesday, January 30, 2007

VIDA DE MENINA




HELENA MORLEY


Vera Brant


Há mais de um século uma menina de treze anos, em Diamantina, começava a escrever o seu diário, por sugestão do pai, filho de ingleses nobres que vieram para o Brasil em busca de um clima para curar a tuberculose do seu chefe, o médico Dr.John Dayrell.
A família esteve, inicialmente, em Nova Lima, na Mina do Morro Velho e, depois, em Diamantina, onde o Dr. John fundou a Santa Casa e ali trabalhou durante toda a vida, até morrer, aos noventa anos.
O pai de Alice, Felisberto Dayrell, era minerador.
O diário de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, tem a data inicial de 5 de janeiro de 1893.
Dotada de uma inteligência agudíssima e de uma sensibilidade invulgar, ela foi anotando no seu caderno escolar os acontecimentos que se desenrolavam ao seu redor, naquela cidadezinha mineira de gente simples e extremamente bondosa.
Enquanto seu pai escavava a terra à procura de diamantes e de ouro, ela acompanhava a mãe e os irmãos, atravessando becos e pontes em direção ao rio, onde lavavam as roupas da família.
Ela esfregava a roupa com as suas pequenas mãos, enquanto o seu olhar e a sua sensibilidade acompanhavam o que se passava ao redor: o barulho da queda a água naquele pequeno regato de pedrinhas redondas e claras, as borboletas que voavam, o seu irmão Renato pescando lambaris.
E quando chegava em casa anotava tudo, para guardar na lembrança aqueles momentos.
A mestra Joaquininha a considerava a aluna mais inteligente da escola. Mas ela duvidava, pois não gostava de estudar, só gostava, e muito, de ler histórias e romances, e de escrever.
“Eu acho que se fosse má seria mais feliz”, escrevia ela quando voltava, aos prantos, da casa de duas amigas da mãe, aonde fora levar umas broas de fubá e as encontrara enforcando um gatinho.

“Hoje fui chegando para o almoço e encontrando Nhonhô na porta da rua com uma asa do meu curió na mão e dizendo: Olha o que a gata fez; comeu seu curió. Eu não posso dizer o que senti, mas caí na cama com os livros na mão, soluçando tão alto que mamãe veio correndo na cozinha, pensando que tinha havido alguma coisa”.
“ Mamãe diz que não se deve ficar alegre na Semana Santa, porque é a semana do sofrimento de Jesus. Eu creio muito nas outras coisas da religião, mas não acredito que ninguém fique triste do sofrimento de Jesus Cristo, depois de tantos anos, e dele já estar no Céu, ressuscitado e feliz”.
“Meu pai diz sempre que gosta mais do meu gênio que do de Luizinha; que eu sou franca, digo o que penso e o que faço e Luizinha é das caladinhas que são mais perigosas”.
A tia Carlota confessando-se com o Bispo e ele fazendo-lhe mil perguntas em lugar de deixá-la à vontade, contando-lhe os seus pecados.
Os tachos de angu, os leitões nos dias de festa. O tutu de feijão. Os torresmos. As cocadas. As macumbas. As velas acesas. As promessas. A criadagem na ginga.
A tristeza de não compreender as criaturas ao seu redor, com pensamentos e sentimentos limitados, rasos.
A paixão pela avó que vivia exclamando: “Forte coisa!” E que a amava muito e a defendia sempre.
Quando a sua querida avó adoece, ela escreve, sentida, percebendo o perigo de perder a sua protetora:
“Nestes dias da doença de vovó eu me esqueci de todas as felicidades que tenho tido e fico só pensando nos sofrimentos. Quem encontrarei mais na vida para dizer-me que sou inteligente, bonita e boazinha?”.
A dificuldade de entender a decepção do pai quando voltava do garimpo sem encontrar o ouro: “Se ele não guardou o ouro lá, por que se decepcionou?”.
A preocupação com a desigualdade social, com o sofrimento dos pobres.
“Depois do almoço mamãe não nos deixa meter os pés na água porque diz que faz mal. Sempre pergunto que mal faz mas nunca explica. Pergunto por que não faz mal aos mineiros que entram na água até os joelhos logo depois de comerem, e ficam na água o dia inteiro, e ela responde que é por estarem habituados”.


Quando fui morar no Rio, em 1956, passei a conviver muito com Alice. Ela morava numa bela casa, na Lagoa Rodrigo de Freitas.
Ia à sua casa duas vezes por semana com a Sarita, sua filha.
Aos domingos havia a reunião da família toda, umas quinze pessoas.
Alice sentava-se à cabeceira da mesa com o seu porte elegante e sua personalidade fortíssima e comandava aquele bando de malucos inteligentíssimos, contando histórias extravagantes e muito interessantes.
Falavam quase todos ao mesmo tempo e Abgar Renault, seu genro, casado com a sua filha Ignez, pedia: “Silêncio! Vamos falar só quatro de cada vez, senão ninguém se entende”.
Mas, quando Alice começava a contar as suas histórias, era aquele silêncio. Todos a escutavam, encantados. Eram sempre assuntos diferentes, espirituosos, interessantes.
Certa vez Alice, que nunca saía de casa, me informou que iria, no dia seguinte, visitar a irmã do meu namorado para ajudar no meu casamento. E queria que eu fosse com ela.
Eu trabalhava no Ministério da Educação e tive que conseguir, com o meu chefe, uma folga para acompanhá-la. Saí mais cedo do serviço e fui para a sua casa.
Ela estava tentando colocar dois lindos brincos de brilhantes. Não entendi bem aqueles brilhantes durante o dia, mas ela insistia tanto que resolvi ajudá-la. Os furinhos das orelhas já estavam fechados, cicatrizados, de tanta falta de uso, foi uma luta para abri-los de novo. Depois de muita peleja, ei-la elegante e bela, com um vestido chique, pronta para a aventura.
Lá fomos nós. Eu, meio sem entender nada, imaginando até que ela havia tramado com a Margarida, irmã do namorado, um pedido de noivado.
O apartamento era uma graça.
A irmã e a sobrinha do meu namorado eram mulheres muito bonitas e prendadas. Mostraram-nos toalhas que elas mesmas bordaram, colchas de tricô que elas mesmas tricotaram e, para o meu desespero, todos os bolos e salgadinhos na mesa do lanche tinham sido preparados pelas duas mais-que-perfeitas.
Entre uma demonstração de habilidade e outra, elogiavam o irmão.
E Alice, nada. Nem um elogiozinho a mim, para equilibrar.
Quando provou o biscoito de nozes que estava mesmo uma delícia, não se conteve e exclamou, constrangida:
_Coitada da Verinha, não vai poder entrar para esta família. Ela não sabe fazer nada!
Fiquei arrasada.
Na volta para casa, exclamei:
_Mas você, hein, Alice? Vem para ajudar no meu casamento e estraga tudo, acaba com ele.
_Mas o que foi que eu fiz?
_O quê? Não se lembra? Apenas disse, com todas as letras, que eu não sei fazer nada, não sirvo para casar.
Ela teve um acesso de riso tão forte que contagiou a mim e ao Rubens, seu motorista. Ele teve que parar o carro, porque não conseguia apertar o acelerador, de tanto rir.
Quando chegamos à sua casa, o seu marido, Augusto Mário, nos esperava na varanda. Estava curioso para saber o resultado da visita e perguntou:
_Como foi o passeio?
A Alice pretendeu dizer que foi uma tragédia mas não conseguiu chegar ao final da frase porque teve outro acesso de riso. E eu, mesmo sendo a prejudicada, também não conseguia parar de rir. Fomos direto para o banheiro.
Quando a Sarita chegou, também curiosa para saber as novidades, o Augusto Mário disse:
_Eu acho que as duas enlouqueceram. Desde que chegaram não pararam de rir e não conseguiram dar uma palavra.
Mas não foi por isso que acabou o namoro. Foi o desencontro das águas. Acho que a minha família não entendeu, até hoje, como foi que eu consegui namorar aquele rapaz, tão pouco inteligente, durante tantos meses e, o pior de tudo, encantada.
Se eu não freqüentasse uma família tão inteligente e irreverente, aquele namoro talvez até desse certo. Mas era demais. Nunca vi gente tão impaciente com a burrice alheia. O Eduardo, filho da Sarita, e o Flávio, seu irmão, ambos inteligentíssimos, faziam perguntas ao meu namorado só para desmoralizá-lo. As respostas eram trágicas.
Depois dele eu só namorei homens inteligentíssimos, o que também não deu certo.
Quando fui à Europa, pela primeira vez, namorei um rapaz bonito, inteligente e culto, que, meses depois, veio ao Rio passar as férias. Levei-o para almoçar na casa de Alice, no domingo. Ele falava um italiano misturado com espanhol, mas se fazia entender. E entendia o que falávamos.
Até Augusto Mário, que era uma pessoa cultíssima – fora jornalista, economista, político, escritor, é autor do livro “Viagem à Argentina” – e exigente, ficou impressionado.
Fiquei eufórica. Estava resgatada, junto à família. A minha capacidade de escolher namorados já não estava em baixa. Todos concordaram com a beleza, a cultura e a inteligência. Mas concluíram que eu não tinha interesse definido por determinado tipo físico, nem mental. O Paolo era loiro, olhos azuis, alto, magro, totalmente diferente do Ivan que era moreno.
Só que o italiano ficava à minha disposição dia e noite. Foi me dando um enjôo tão grande que não sabia mais o que fazer.
Resolvi contar a Alice e pedir-lhe um conselho.
Ela ficou horrorizada:
_ Verinha, você vai acabar solteirona. Um rapaz bonito, bem de vida, culto, com aqueles olhos azuis.
Eu disse:
_Eu acho que foram os olhos azuis que me enjoaram, Alice. O céu é azul mas se enche de nuvens, escurece, chove, anoitece, depois fica azul de novo. Mas, os olhos, não. É aquele azul forte o tempo todo, me olhando. Não estou suportando. Amor não tem nenhum compromisso com inteligência, sabedoria, beleza, nada disso.
Ela me respondeu:
_Com a beleza não tem nada a ver, não. Mas com a inteligência tem, sim. Você não suportaria viver, durante muito tempo, com um homem pouco inteligente.
Quando eu adoecia, ia passar uns dias em casa de Alice, pois não tinha ninguém para cuidar de mim. A Hilda, minha empregada, só ia duas vezes por semana.
Alice tinha o hábito de dormir à tarde, mas, naqueles dias, ia para o meu quarto e ficávamos conversando horas seguidas.
Um dia ela me contou que, quando menina, sua tia havia dado uma surra na escrava. A escrava era o dobro da tia, que era franzina e muito brava.
Alice estava louca para saber como ela havia conseguido aquela proeza, mas tinha muito medo da tia brava.
Certa vez, tomou coragem e perguntou:
_Minha tia, como foi que a senhora conseguiu dar uma surra na fulana que é muito mais forte que a senhora?
A sua tia respondeu:
_Eu experimentei, dando um tapinha. Ela não reagiu, eu avancei.
Nunca, na vida, me esqueci dessa lição. A qualquer ameaça de tapinha, moral ou física, eu reagia logo, antes que o inimigo avançasse.
A Maria da Penha era uma figura humana interessantíssima. Tinha vinte e poucos anos, era bonita, simpática, excelente empregada. Só tinha um defeito, grave: Não podia acordar sem ser naturalmente. Se alguém a chamasse de manhã, durante o sono, ficava num mau humor de ninguém suportar. Então, a única solução era deixá-la dormir até o sono acabar.
Adorava bichos e resolveu criar gatos. Em poucos meses havia mais de dez gatos.
Certa manhã, Alice desceu mais cedo para a cozinha e a gataria toda começou a puxar a sua saia e arranhar as suas pernas, com certeza pedindo leite ou comida.
Lá pelas tantas ela perdeu a paciência e chamou o Rubens, motorista. Ele estava exatamente limpando e lubrificando o carro que Augusto Mário mantinha, sempre, na garagem para, na hipótese de morte de algum amigo, ou de uma autoridade, não ter que incomodar ninguém. Acontece que, quando morria um amigo, ou o carro estava enferrujado ou o Rubens sumido.
Neste dia estava tudo certo: o carro lubrificado e o Rubens ali.
Alice não perdeu tempo: chamou o Rubens e determinou que colocasse todos os gatos num saco e os soltasse no mato. Ele adorou a idéia de poder passear um pouco. Em poucos minutos juntou a gataria ao redor do prato de leite, colocou-os no saco e se mandou para a rua.
Quando a Maria da Penha acordou e soube da confusão toda, abriu o maior berreiro:
_ A senhora é um monstro, como pôde fazer tamanha maldade? E agora, o que vai ser dos pobres gatinhos, quem lhes dará leite. Os pobrezinhos no mato, com cobra e tudo, morrendo de frio à noite. Ai, meu Deus! E chorava, chorava.
Alice foi entrando em pânico. Acho que já estava arrependida e assim não deu uma palavra e saiu de mansinho para a cozinha, pois já sabia que, naquele dia, não ia ter nem um ovo frito para comer, se dependesse da Maria da Penha.
Quando o Rubens voltou, já era mais de meio dia. Alice foi dando ordem:
_ Volte lá e só retorne depois que encontrar o último gato.
Alice havia acordado cedo e o Rubens estava lubrificando o carro, justamente porque havia morrido um amigo do casal. O enterro seria às quatro horas da tarde. Todos prontos para sair e, cadê o Rubens? Nada. Cansaram de esperar e chamaram um táxi.
Lá pelas sete horas da noite, quando Augusto Mário e Alice já haviam regressado, também de táxi, chegou o Rubens, todo suado e arranhado, e só com dois gatos.
A Maria da Penha brigou com ela e foi embora para a casa da Sarita.
Meses depois, ela disse à Sarita que queria de volta a Maria da Penha.
Sarita teve um trabalho enorme para substituir a Maria da Penha para trazê-la de volta para a casa da sua mãe. Duas semanas depois, avisou a Alice que traria a empregada no dia seguinte.
Alice, na maior tranqüilidade, respondeu:
_Não traga não, porque não a quero mais.
Sarita, desapontada:
_Mas, mamãe, eu tive um trabalho enorme para conseguir outra empregada e agora você muda de idéia?.
E, Alice, calmamente:
_E você acha que eu sou mulher para ter uma opinião só a vida inteira?
Num domingo, eu não fui à casa de Alice para o almoço porque estava indisposta, com dor de estômago. Na segunda feira ela foi ao meu apartamento, me visitar.
Era um apartamento mínimo, com quarto e sala, e uma janela enorme, no décimo andar.
Ela foi entrando e dizendo:
_Verinha, que apartamento perigoso! Se você entrar nele com muito entusiasmo, vai sair pela janela.
Ficamos a tarde inteira conversando. Ela me contou o quanto gostava da minha mãe, sua prima. Que freqüentava muito a nossa casa, quando eu era pequena.
Perdi a minha mãe com oito anos e pedi a Alice que me contasse detalhes de sua personalidade, das coisas das quais eu não podia me lembrar.
Lembro-me de uma das histórias, ótima: a sua nora, Elza, estava brigando muito com o seu filho Caio e fazendo-lhe muitas críticas. Dizia, no entanto, que o amava.
Alice decidiu:
_Vamos à casa de Amália. Lá você vai ver o que é amor.
Foram. A Elza, uma mulher linda e chique, chegou à nossa casa toda animada para ver o amor de perto. Só encontrou um bando de crianças descabeladas: éramos nove, o mais velho com dezoito anos e a mais nova, recém-nascida.
A mamãe, linda, cuidando dos filhos, fazendo doce de casca de laranja, o que o Zezé mais gostava – dizia com a maior alegria - porque Zezé pra cá, Zezé pra lá, e contava casos do Zezé. E vinha menino, chateava, ela mandava sair para o jardim, vinha outro, enchia a paciência, ela colocava para dormir. A pequenina chorava, ela ia correndo acudir e já a trazia no peito, continuando as histórias e... mais Zezé, mais Zezé.
A Elza, dizia Alice, estava completamente zonza. Ela, que só tinha dois filhos, Felisberto e Arnaldo, que viviam limpos, penteados, com as babás, tudo em ordem, não estava se adaptando àquela bagunça e cutucava Alice para irem embora.
Quando Alice ameaçou sair, a mamãe não deixou:
_De jeito nenhum, vocês vão esperar o Zezé, está na hora dele chegar.
E contou mais histórias para distraí-las enquanto o Zezé não chegava.
E chegou o Zezé, meu pai: baixo, feio, falando tão depressa que não dava para entender nada.
Os olhos da minha mãe faziam ondas, refletiam a felicidade. E o Zezé falando duas palavras de cada vez, Alice e Elza não entendendo nada e a minha mãe traduzindo, aquela confusão.
Cansaram de tanta loucura e foram embora, deixando os dois pombinhos com a filharada.
No caminho, Elza quis saber de Alice qual era o sentido daquela visita, o seu vestido branco todo sujo de mão de menino, aquele cansaço de confusão mental completa. E ouviu a resposta:
_Amor é isso, minha filha. A mulher, quando ama, tira de letra um dia como este, que para você pareceu um martírio, na maior tranqüilidade. Quando o Zezé chega, passa a borracha nas tormentas todas e cai nos seus braços como no primeiro dia de casamento. Você, desocupada do jeito que é, com o marido bonitão que tem, fica botando minhoca na cabeça e criando problema onde não existe. Acho que é desamor. Não tem outra explicação.
Esta história é uma definição de Alice. Ela não precisava sair de casa para mostrar o que era o amor. O exemplo era ela própria, com Augusto Mário.



Alice possuía uma memória fantástica. Contava-me episódios da sua infância, no final do século atrasado, pois ela nasceu em 1.880, e eu ficava extasiada com a sua coragem e personalidade.
Sempre havia imaginado que, naquela época, até muitos anos depois, as mulheres eram umas bobocas, fazendo só o que os pais e os maridos permitissem e dizendo amém a todos. Mas, não. Alice dialogava com os pais, dizia-lhes o que bem entendia, discordava, opinava, concordava às vezes, não arredava um milímetro do que considerava ser o correto.
O namoro com Augusto Mário, seu primo e sua única paixão, começou quando ele voltou de São Paulo, onde passara vários anos estudando Direito e, tendo-se formado, voltara para Diamantina.
Quando estava para voltar, a família toda se organizou para recebê-lo com festas e homenagens.
Alice não tinha uma só roupa que prestasse. Só possuía uma saia nova e não tinha dinheiro para comprar uma blusa.
O seu Luís, que era encantado com ela e queria namorá-la, era filho do seu Mota, dono da loja de tecidos. Quando ela lhe contou o seu aperto, ele se propôs a levá-la à loja e pedir ao pai que desse a ela um pedaço de tecido para fazer a blusa. Foram. Foi feita a blusa.
Vindo de São Paulo, Augusto Mário passou uns dias em Belo Horizonte e, lá, quis saber dos primos como estava Diamantina e, principalmente, como estavam as moças que ele havia deixado anos atrás, meninas ainda.
Um dos primos fez-lhe o relatório de cada uma das moças, umas lindas, outras, estudiosas, interessantes, chiques. Mas... existe uma, a Alice, que não sendo bonita, nem a mais elegante, é a mais encantadora de todas. No ambiente em que ela se encontrar, depois que começa a falar, com tanto espírito, inteligência e simpatia, cresce e supera todas as outras, por mais bonitas que sejam.
Aquilo ficou gravado na memória de Augusto Mário. E ele pensava: Será possível a Alice, aquela menina magrela, agressiva, irreverente, ter se tornado uma mulher tão interessante?
Afinal, chegou a Diamantina.
A família inteira reunida e orgulhosa do seu doutor em Direito, formado em São Paulo.
Foram todos para a casa de seus pais, onde seria a festa. Dois amigos iriam buscá-lo na estação e levá-lo à casa.
Quando ele chegou, foi aquela quantidade de palmas e sorrisos, abraços. Um das primas trouxe-lhe um ramo de flores. Ele, encabulado, sem saber o que fazer com as flores, procurou com os olhos alguém a quem entregá-las e encontrou Alice, que estava próxima, e ofereceu-lhe o ramo de flores. Foi a conta: o seu Luís ficou morto de ciúmes e queria porque queria que Alice lhe devolvesse a blusa.
Para o sábado seguinte estava programada uma festa com dança e tudo, e o sofrimento de Alice começou de novo. E a roupa?
Depois de muita luta, conseguiu um pano e fez um vestido de festa.
As mulheres estavam muito chiques e ela se sentia humilhada. E não conseguiu fazer sucesso porque ficou calada, num canto.
Qual não foi a sua surpresa quando Augusto Mário, depois de dançar com várias moças, foi buscá-la para dançar. Ela ficou encabulada. Seu coração dava pulos no peito e foi uma luta para encontrar o rítmo.
Controlou-se e começaram a conversar. Ele não a deixou mais, até o final da festa.
Naquela noite, quando chegou à casa, ela se ajoelhou
aos pés da cama e pediu a Santo Antônio, com todo o fervor, que, se não fosse para casar com ele, tirasse aquela ilusão de sua cabeça de uma vez por todas, porque não queria sofrer aquele amor que já brotava com tanta força em seu coração e que ela imaginava muito violento.
Mas não era só ela quem estava apaixonada por ele. Uma meia dúzia de moças também. Era, naqueles dias, o assunto de Diamantina.
Ela, então, decidiu sumir da vida dele, para evitar sofrimentos.
Um dia, tendo ido ao armarinho comprar botões e fitas, percebeu que ele a acompanhava. Andou mais rápido e ouviu o barulho de seus passos. Ouviu-lhe a voz, chamando-a . Apertou os passos e saiu correndo, ele correu atrás.
Quando chegou à porta de casa, já exausta, começou a subir as escadas, com dificuldade.
Foi quando ele, alcançando-a, puxou-a pelos cabelos e lhe deu um beijo.
Ela ficou tonta, desnorteada, sem entender nada.
_Quer se casar comigo?, sussurrou ele.
_Agora, querendo ou não querendo, temos de nos casar, pois você já me beijou e estou desonrada, respondeu Alice.
Casaram-se. E parece-me que Alice foi, durante toda a vida, a companheira que mais amou o homem com quem se casou.
Um dia, acordei com Alice me passando a maior descompostura:
_Você deve estar pensando que também é rica porque convive com Ignez, Sarita e Yolanda, mas você é pobre, Verinha. Convença-se disso! Comece a fazer loucuras e depois vai se encalacrar toda, encher-se de dívidas e não vai conseguir pagar com este emprego mixuruca.
Eu, sem entender nada, resmunguei:
_ Ser pobre já é desagradável, mas ter alguém que já, de manhã cedo, vem me xingando de pobre é o fim da picada. O que foi que eu fiz para esse xingatório todo?
_Comprou uma geladeira elétrica a prestações. E não me pergunte quem me contou porque eu estou proibida de dizer, foi falando.
_Mas, Alice, você com esta fama toda de inteligente, não raciocinou ainda que aquela geladeira de gelo que você me deu foi o maior presente de grego do mundo? Dia sim, dia não, tenho de comprar uma barra enorme de gelo que se derrete e vai para o esgoto. Vou passar a minha vida inteira jogando o meu dinheirinho minguado no esgoto? Já uma geladeira elétrica, com uma prestação um pouquinho mais alta do que as barras de gelo, ficará para a vida toda. Para você ter uma idéia, pretendi dar a geladeira de gelo para o porteiro e ele não aceitou. Foi mais inteligente do que eu.
Ela ficou parada, olhando para a minha cara um tempão e saiu com a proposta mais extravagante que já recebi em toda a minha vida:
_Sabe de uma coisa, Verinha? Você é mesmo muito inteligente e não pode continuar nessa pobreza. Vamos escrever um livro, juntas. O José Olympio anda louco para publicar outro livro meu. Aí, ele publica, todos ficam conhecendo o seu talento e você fica rica.


Minha Vida de Menina



Em 1941 a família Brant morava num apartamento, enquanto a sua casa estava sendo construída na Lagoa Rodrigo de Freitas, perto do Corte Cantagalo onde existe, hoje, o Edifício Helena Morley.
Alice detestava morar em apartamento.
Certa tarde de sábado, para distrair os filhos, pegou dentre os seus guardados o diário que havia escrito quando menina e resolveu ler para eles e para o marido.
Todos escutavam encantados.
Ao final da leitura o marido Augusto Mário, sugeriu:
_ Por quê não publicamos esse diário? Muita gente iria ter a oportunidade que estamos tendo de ouvir histórias tão interessantes de uma menina inteligente numa cidadezinha mineira, no final do século passado.
Alice não achou muita graça na idéia. Ignez, sua filha, adorou.
Depois de muita discussão, Alice concordou em transformar tudo aquilo num livro, desde que fosse com pseudônimo, do contrário Diamantina inteira iria brigar com ela.
Pensaram vários nomes. Alice preferiu Helena porque achava um nome muito bonito. E o sobrenome Morley, de sua avó materna.
Assim nasceu Helena Morley.

O livro foi lançado pela Livraria José Olympio em 1942.
Foi o maior sucesso. O Brasil inteiro comentava e as edições se esgotavam, uma após outra.


O que eu choro na sua ausência
não é a rosa do teu corpo jovem, abatida no haste,
nem a tua alegria, que não mais verei:
doem-me os teus frutos, que, ao caíres, esmagaste sobre ti;
amarga-me o quinhão de tempo e flor
arrebatado às tuas mãos de vida”.

Wednesday, January 10, 2007

Saturday, January 06, 2007

GOTA D'AGUA

O aumento de 91% nos proventos de deputados federais e senadores foi a gota d'água que faz explodir minha revolta contra a falta de respeito ao povo brasileiro, a impunidade e os abusos que vêm sendo praticados por egoístas detentores de poder no Executivo, Legislativo e Judiciário.

Estou com 80 anos, vividos no trabalho árduo, responsável e produtivo, como empresário empreendedor. E fico desolado por ver nosso querido Brasil afundando cada vez mais pela incapacidade e despreparo de seus dirigentes e, o que é pior, pela falta de patriotismo e pela prevalência desavergonhada de interesses pessoais em detrimento da coletividade. A quem apelar para impedir tanta pouca vergonha?

O presidente Lula diz que vai preservar todos os direitos. Para tanto, irá onerar ainda mais os que trabalham e contribuem para a geração de empregos e produzem riquezas para a Nação, criando mais encargos, obrigações e impostos, porquanto são esses brasileiros que pagam a "farra cívica" de uns poucos.

Imploro por socorro para que prevaleçam a ordem e a severidade pública em nossa querida Pátria.

Não quero terminar minha vida constatando a prevalência da inversão de valores, e tendo vergonha dos que nos governam.

Willy Egon Frey, Fraiburgo/willy@renar.com.br

Tuesday, January 02, 2007

Exame de Consciencia

Li artigo de conhecido cronista dizendo que o povo não é melhor do que o Congresso que elegeu, pois uma pesquisa do Ibope revela que 69% dos entrevistados mostraram-se mais cúmplices do que vítimas. Se pudessem, seriam tão venais quanto os políticos. Dessa maneira, diz o cronista, o Ibope tenta demonstrar que os problemas éticos não estão concentrados apenas nas elites, mas em todas as classes sociais.

Em primeiro lugar, trata-se de uma pesquisazinha safada que surge no momento em que os três poderes caem de podre. Em segundo lugar, 31% não concordaram. Em terceiro lugar, quem ensinou os 69% a pensar assim, senão a classe dominante e principalmente o neoliberalismo, cuja cartilha é “o lucro é meu pastor e nada me faltará”? Você não pode tratar um menino pobre como um cão e querer que ele se comporte como um cidadão sem mácula.

Quando estudei na infancia,, éramos todos pobres e nenhum dos meus ex-colegas tornou-se delinqüente. Aprendia-se, além das matérias obrigatórias, a cultivar a honra, o caráter, a dignidade e a honestidade, não porque poderíamos ser castigados, mas porque há coisas que um homem (ou mulher) não faz. Querer culpar o povo por acreditar nas mentiras de marqueteiros milionários fica a meio caminho entre a ingenuidade e a cumplicidade.

O problema, na verdade, é que há muito tempo não se ensina às crianças o conceito de honra. Aliás, só vejo a palavra ser usada quando alguém diz “palavra de honra” – sem nem saber o que está dizendo. Responda rápido: é bom viver num país onde o conceito de honra foi abolido e tudo pode se comprado? É bom viver num país sem outras características além do desemprego, da miséria, da prostituição e da criminalidade?

Até quando todos, inclusive os muito ricos e os muito poderosos, agüentarão esse isolamento? Não seria melhor uma sociedade ética? Certamente teríamos mais escolas, mais hospitais e menos presídios e hospícios. O problema é que, para isso, o poder teria que se regenerar. Fará isso?

Súplica da Criança




















Senhor !...
Disseram os homens que me queriam tanto,
mas ao atingir-lhes a casa, não dialogaram
comigo, segundo as minhas necessidades.
Quase todos me ofereceram um berço enfeitado,
mas poucos me deram o coração.
Afirmam que devo procurar a felicidade,
entretanto, não sei como fazer isso, se os
vejo a quase todos sofrendo e rebelando-se
por não aceitarem as disciplinas da vida.
Escuto-lhes as lições de paz, contudo,
acompanho-lhes as rixas em vista de estarem
sempre exigindo o maior quinhão de recursos
da Terra. Recomendam-me buscar a alegria, mas,
muitas vezes, observo que esta misturado de
lágrimas o leite que me estendem. Erguem
palácios para mim, no entanto, entre as
paredes dessas mansões coloridas e belas,
renovam, a cada dia, reclamações e queixas
que não sei compreender, nem registrar.
Explicam que preciso praticar o perdão e ,
ao mesmo tempo, muitos me mostram como
exercitar a vingança.

Senhor !...
Que será de mim, neste grande mundo que
construíste entre as estrelas, sempre
adornado de flores e aquecido pelo Sol, se
os homens me abandonarem ?
Faze que eles reconheçam que dependo deles
como o fruto depende da arvore. E, tanto
quanto seja possível, dizer-lhes, Senhor,
que terei comigo apenas o que me derem e
que posso ser, enquanto estiver aqui,
unicamente o que eles são.