Thursday, January 21, 2010

Uma Empresa... A história da Sadia-Epílogo

O setembro negro da Sadia


"Walter Fontana Filho sentou-se próximo ao avô, Attilio Fontana, que ocupava a cabeceira da comprida mesa de vidro da sala de reuniões do conselho de administração da Sadia, em São Paulo. Empresa com ações na Bolsa, a Sadia vinha perdendo capital, naquele ano de 1983, com as tempestuosas oscilações de mercado. Para evitar que os controladores da empresa saíssem perdendo, o conselho decidira meses antes recomprar boa parte dos papéis da companhia e transferi-los para a Fundação Attilio Fontana, o fundo de pensão dos funcionários. A recompra ficara a cargo do diretor de administração, Osório Furlan, genro do patriarca Attilio Fontana.

Walter Fontana, ou Waltinho, como era chamado pela família, fizera na surdina um levantamento da compra e da venda de ações da Sadia nos últimos tempos. O resultado da enquete era o trunfo que exibiria naquela manhã aos parentes com assento no conselho da empresa. Expondo uma sequência de gráficos, ele demonstrou que sim, Osório Furlan havia realmente comprado papéis da Sadia. Mas, em vez de repassá-los para a fundação, anexara uma parte substanciosa deles ao seu portfólio.

Sem que ninguém no clã soubesse, Osório ultrapassara o teto de 10% das ações que cabiam individualmente a cada sócio controlador. Abocanhara 14% das ações e, caso seduzisse alguns familiares, mandaria na empresa. Nada mal para Osório, que fora garçom em Concórdia, a cidadezinha catarinense onde nascera a Sadia, antes de se casar com a filha mais velha de Attilio Fontana e virar diretor da empresa.

"Moleque, mentiroso!", berrou Osório Furlan ao ouvir o relato do sobrinho Walter Fontana. "Moleque e incompetente!", continuou urrando, enquanto socava a mesa com os punhos. Raul dos Reis, um dos genros de Attilio Fontana, entrou na briga: "Moleque é você, Osório. Você é um velhaco que enganou a todos." Osório passou a mão num cinzeiro e o jogou em Raul dos Reis. O cinzeiro se espatifou na mesa e quebrou o tampo de vidro. Reis revidou atirando uma xícara de café contra Osório Furlan. Atingiu-o no supercílio, que começou a sangrar.

Ao sentir o sangue nas têmporas, Furlan deixou a sala, correu até seu escritório e pegou um revólver na gaveta da escrivaninha. Foi contido antes de voltar para a sala do conselho. Levado para fora do prédio, anunciou aos gritos que daria queixa à polícia.

Dias depois, houve outra reunião do conselho de administração. Apaziguador, Osório Furlan disse ao sogro: "Seu Attilio, o senhor pode votar também com as minhas ações, me abstenho de votar sobre a minha situação aqui." Attilio Fontana, que aos 83 anos tinha a palavra final, respondeu secamente: "Pois então o senhor se considere fora da empresa com o voto de 100% dos acionistas." Ao ouvir a sentença, Furlan encarou cada um dos sócios, com quem trabalhava há quase quarenta anos, e, dramático, vaticinou: "Um dia eu volto."

Attilio Fontana não se dava muito bem com Osório Furlan. Tolerava-o na empresa por ser o pai de Luiz Fernando, o neto predileto, a quem considerava o seu delfim. Menino, Luiz Fernando Furlan acompanhava o avô por todo lado e, durante anos, foi seu secretário particular. Era o neto mais parecido com o patriarca não só no físico (ambos altos e delgados, de lábios finos e sorriso inexpressivo) como no temperamento mais político. Na briga, porém, Luiz Fernando Furlan se alinhou com o pai, que sempre considerou injustiçado. Embora continuasse na Sadia, manteve distância da família. E nunca perdoou o primo Walter Fontana. Mais de 25 anos depois do voo do cinzeiro e da xícara, os dois se falam protocolarmente.

A cizânia acionária levou os donos da Sadia a abrirem, em 1986, uma corretora. Deram-lhe o nome de Concórdia em homenagem ao berço da companhia e na esperança de que apaziguasse o clã. A ideia inicial era de que operasse apenas com as ações da empresa. Mas ela obteve resultados tão bons que acabou oferecendo serviços a terceiros. Saiu-se bem também nessa seara e se consolidou. O sucesso inicial da Concórdia no mercado financeiro serviu de impulso para que, duas décadas depois, a Sadia fosse incendiada por papéis podres.

Attilio Fontana desconfiava do mercado financeiro. Todas as vezes que um banco lhe oferecia ganhos fantasmáticos com papéis, ele dizia não. Um dos herdeiros da Sadia me contou que, certa vez, após ter recusado um investimento, Fontana reuniu os conselheiros da companhia, à época todos da família, e perguntou: "Essa empresa existe para quê?" Ele mesmo respondeu: "Para vender frango, vender peru e fazer solsicha. Se é para fazer diferente, é melhor abrir um banco. Mas não quero ter um banco, quero ter um frigorífico."

Quarenta anos antes, numa fria manhã de 1943, Attilio Fontana entrou na sede do Moinho Concórdia, uma construção amarela, de telhados triangulares e janelas brancas, para participar de uma assembleia de acionistas. O prédio ficava no centro de um terreno plano, de terra batida, que durante a estação das chuvas virava uma lama espessa, difícil de atravessar. Fontana pediu a palavra e, para surpresa dos sócios, anunciou sua saída do negócio.

Ele era um comerciante bem-sucedido e com um bom nome em Concórdia e nos arredores, o oeste de Santa Ca-tarina. Atendera ao pedido do prefeito da cidade para entrar na sociedade e evitar a falência da s.a. Indústria e Comércio de Concórdia, nome oficial da empresa, que incluía também um frigorífico. A companhia, um empreendimento ousado para uma cidade de apenas 3 mil mora-dores, fora criada dois anos antes por empresários locais. O negócio não deu lucro. Com a entrada de Attilio, o moinho saiu do vermelho.

Ao ouvir o apelo dos sócios para que não os abandonasse, Attilio lhes disse que aceitaria ficar, desde que tivesse mais de 50% do negócio e se tornasse o controlador. E lhes apresentou a conta: todos os sócios teriam que vender a ele suas ações pela metade do preço, com a opção de saírem e receberem o dinheiro à vista, ou continuarem como cotistas minoritários. Para sua surpresa, todos concordaram. E a maioria optou por permanecer na sociedade.

"Nem de longe eu podia imaginar que, naquela assembleia, estivesse decidindo o passo fundamental da minha carreira de empresário", relatou Attilio Fontana em seu livro de memórias, História da Minha Vida, escrito às vésperas de seus 80 anos. O passo fundamental, que ensaiava há anos, era deixar o comércio e virar industrial.

O gaúcho Attilio Fontana nasceu em 1900, em Santa Maria da Boca do Monte. Foi o oitavo dos doze filhos de Thereza Dalle Rive e Romano Fontana, originários do Vêneto, que chegaram da Itália no final do século xix, compraram uma fazendola e botaram os filhos para trabalharem a terra. O menino Attilio alfabetizou-se no dialeto do Vêneto, foi usar sapato pela primeira vez aos 15 anos e nunca perdeu o sotaque da colônia: dizia caro em vez de carro e solsicha no lugar de salsicha. Recém-casado, se mudou para Santa Catarina e prosperou no comércio.

Seu primeiro desafio como sócio majoritário da s.a. Indústria e Comércio de Concórdia foi dar um jeito no frigorífico, que precisava de maquinário. Com o mundo em guerra, os oceanos transformados em palco de batalha, era impossível importar qualquer equipamento da Europa ou dos Estados Unidos. Attilio Fontana soube que um frigorífico em Guaporé, no Rio Grande, havia falido e os donos queriam vender as máquinas. Foi para lá e fechou o negócio.

Um dos empregados do frigorífico falido era o jovem Vittorio Galeazzi, a quem coube desmontar algumas das velhas máquinas que seriam levadas para Concórdia. Fontana se impressionou com a destreza do rapaz de 22 anos e o convidou a mudar de emprego. "O seu Attilio andava muito arrumado e estava de terno cinza, gravata e chapéu quando me chamou para trabalhar com ele", disse Galeazzi numa manhã chuvosa, em setembro, na sede da Associação dos Aposentados de Concórdia.

Ele embarcou no caminhão que levava o maquinário e chegou a Concórdia três dias depois, no final da tarde de sexta-feira. Cinco meses depois, no dia 22 de novembro de 1944, as máquinas entraram em operação. "Eu sangrei o primeiro porco", disse-me Galeazzi, que hoje tem 87 anos. "Os outros empregados ficaram olhando porque não sabiam como usar aqueles equipamentos. Sangrei trinta porcos só no primeiro dia. Eles vinham pendurados numa roldana e aí eu passava a faca." Os porcos eram destrinchados em mesas de madeira onde viravam linguiça, salsicha, salame e banha. Em seis meses, o frigorífico abatia 200 porcos diariamente. Attilio Fontana mudou o nome da empresa: combinando as iniciais da s.a. Indústria e Comércio com a sílaba final de Concórdia, criou a Sadia.

O odor dos animais mortos chegava até a casa de Fontana, a poucos metros do frigorífico, separado da rua apenas por uma cerca de arame. Quando sua filha Maria Therezinha, adolescente, reclamava do mau cheiro, ele respondia: "Minha filha, isso é cheiro de dinheiro, cheiro de vestido novo, de sapato novo." A dedicação ao negócio era total. "Às vezes, trabalhávamos quinze horas por dia, e os diretores, quase todos da família, ficavam lá com a gente", contou Galeazzi. "Acreditávamos que estávamos participando de uma coisa muito grande. Chamávamos a empresa de Família Sadia."

A chegada de Victor Fontana, so-brinho de Attilio, deu um novo elã ao frigorífico. Victor se formara em engenharia química, em Porto Alegre, e trouxe técnicas de higiene e de conservação de carnes que reduziram as perdas. O passo seguinte foi o investimento em frangos e perus congelados. Atrás de novas ideias, a empresa começou a enviar funcionários aos Estados Unidos e Europa para estudar a produção de alimentos semiprontos e congelados. Abriu escritórios e fábricas no Paraná e em São Paulo.

Duas décadas depois de criada, os patrões ainda mantinham proximidade com os funcionários. "Alguns diretores jogavam truco com a gente na hora do almoço", contou Valdir Schumacher, que trabalhou trinta anos na companhia. "O trabalho era pesado, mas tínhamos a sensação de que os donos se importavam com os empregados, e isso nos fazia sentir parte da companhia. Fazíamos qualquer coisa pela Sadia."

Já na cúpula da Sadia as relações eram conflituosas. Victor Fontana, que assumira a diretoria industrial, defendia que o trabalho dos operários não fosse interrompido, para que os produtos não estragassem na linha de pro-dução. Osório Furlan, que cuidava da administração, discordava: não queria que a empresa gastasse mais com horas extras. Um dia, depois de Osório ter dispensado os funcionários, Victor os chamou de volta. Os dois se atracaram na frente dos operários. Foram parar na sala de Attilio Fontana, que deu razão ao sobrinho. A briga deu origem ao rumor de que Osório Furlan urinava na banha para arruinar o trabalho de Victor Fontana.

Attilio Fontana usou o que ganhou na Sadia para se projetar na política. Em 1946, elegeu-se vereador, foi depois deputado e chegou a senador. "Ainda que não estivesse todo tempo na Sadia, ele mantinha a empresa sob seu comando", disse um dos seus herdeiros. "Quando não gostava de alguma coisa dizia: "Non, isso aqui non", e todo mundo obedecia." Quando visitava as fábricas, ia direto para a linha de produção e passava horas conversando com os operários. "Ele sabia tudo o que se passava na empresa através do chão de fábrica", contou o herdeiro.

Só havia algo que Attilio não tolerava. Que seus empregados falassem mal do seu partido, primeiro o psd e depois, na ditadura militar, a Arena. "Se alguém dizia que era do mdb, era demissão na certa", contou Iburici Fernandes, que trabalhou 33 anos na companhia.

No começo dos anos 50, a Sadia ainda sofria com as perdas de produtos perecíveis. Elas ocorriam, sobretudo, no transporte, por causa do longo trajeto de caminhão de Concórdia até os centros consumidores. Mortadelas, presuntos cozidos e salsichas chegavam ao destino com o prazo de validade quase vencido. Omar, filho do meio de Attilio Fontana, teve a ideia de transportarem a carga por avião. E a Sadia alugou um Douglas dc-3, da Panair.

Como a Panair só cedia o avião aos domingos, a Sadia o comprou. Mas surgiu um novo problema: o alto custo do combustível. Para ter acesso aos benefícios fiscais que o governo dava às companhias aéreas, entre eles redução no preço do querosene de aviação, Omar Fontana sugeriu que se arrendassem mais dois aviões, caracterizando assim a existência de uma empresa aérea. Com essa pequena frota foi criada, em 1955, a Sadia Transportes Aéreos.

Como no caso da corretora Concórdia, o departamento criado para atender uma necessidade interna da Sadia teve grande sucesso. O transporte por avião deu uma vantagem competitiva à Sadia: seus produtos chegavam aos consumidores mais rápido do que os de seus concorrentes. Nas horas ociosas, os aviões foram usados para servir a terceiros. Com o tempo, a Sadia Transportes Aéreos virou a Transbrasil, que chegou a ter mais de vinte jatos e rotas para o exterior. A essa altura, a Sadia não usava mais o transporte aéreo: com o surgimento de caminhões refrigerados e a melhoria das estradas, ficou mais barato fazer o transporte por terra. No ano 2001, depois da morte de Omar Fontana, a Transbrasil quebrou.

Já no reinado dos caminhões frigo-ríficos, houve um atrito de monta entre Osório Furlan e os familiares. Uma vistoria burocrática descobriu que os caminhões da Sadia transportavam também produtos de uma distribuidora de bebidas, a Frederico Bruck, que Osório Furlan acabara de comprar. Foi acusado de usar a Sadia em proveito próprio.

Attilio Fontana, que ocupava a presidência de honra do conselho, morreu em 1989. Deixou registrada no seu livro de memórias a esperança que depositava nos descendentes: "Eles são o meu orgulho. A eles confio o legado do meu nome e da minha memória, bem como o fruto do meu trabalho." Um acordo de acionistas serviria, em tese, para manter os herdeiros unidos. Segundo o documento, as ações dos controladores só podiam ser vendidas para outros descendentes. Mas, em situação igualitária, nenhum deles, individualmente, tinha condições de comprar ações do outro. Com isso, muitos continuaram na empresa quase à força, sem ter o que fazer na prática, a não ser dar palpites. As brigas entre eles fermentaram.

Em 1994, o comando da companhia foi transferido para a terceira geração, a dos netos do patriarca. Luiz Fernando Furlan, o predileto, o filho de Osório, assumiu a presidência do conselho de administração. Walter Fontana Filho, que denunciara Osório, a presidência executiva. A escolha dos dois foi decidida pelas nove famílias dos filhos do fundador, além das dos sobrinhos. (A Sadia tem hoje quase 100 herdeiros.) Havia consenso de que os dois eram os mais indicados para os cargos. Luiz Furlan fora preparado pelo avô para sucedê-lo no conselho e, embora nunca tivesse tocado a operação, conhecia bem os números da companhia e passava credibilidade aos acionistas. Walter Filho, o Waltinho, passara por todos os setores da fábrica, da produção até a logística e a administração.

Entre 1994 e 2003, no entanto, a Sadia viveu uma situação insólita: o presidente do conselho e o presidente-executivo mal trocavam palavras. As ordens de um e as contraordens do outro, e vice-versa, se sucediam, deixando atônitos executivos graduados.

A companhia tornou-se errática. As últimas filiais de peso que a Sadia abriu - Tóquio, Milão e Buenos Aires - datam do começo dos anos 90. Com Luiz Furlan e Walter Fontana Filho se trombando no comando, a empresa fez poucas aquisições. As mais importantes datam de 1999: a Miss Daisy, de sobremesas congeladas, e a Granja Rezende, de pesquisa genética e produção de aves e suínos.

As divergências entre eles não tinham, para os que não estavam alinhados com um ou outro, motivações estratégicas. "Começou a ficar cada vez mais marcada a diferença entre o clã Furlan e o clã Fontana", contou-me um herdeiro. "Os Furlan se comportavam como se não fossem da família. Eles eram fechados no seu grupo, não acreditavam que os Fontana pudessem administrar qualquer coisa."

A primeira herdeira a expor as divergências do clã foi Yara Fontana D Ávila, neta de Attilio Fontana. Ela trabalhou na companhia num plano de benefícios para os funcionários e montou um programa de controle do alcoolismo que, posteriormente, teve algumas partes adotadas pela Organização Mundial de Saúde. Passou nove anos na empresa, segundo contou, confinada a uma "salinha sem janela". Raramente tinha acesso a reuniões de cúpula. Sentindo-se marginalizada, entrou em depressão e se demitiu.

Fora da Sadia, atacou o machismo de seus primos Walter e Luiz Fernando, e também o do seu próprio irmão, Eduardo, então diretor industrial da empresa. Fez tudo isso num livro chamado Como Fritar as Josefinas: a Mulher nos Bastidores da Empresa Familiar Brasileira, que publicou em 1996. Josefina era o nome de uma linguiça fabricada pela Sadia e a sua fritura, no livro, é uma referência à falta de consideração com que eram tratadas as herdeiras.

Num dos capítulos, Yara lista sete razões para uma empresa familiar quebrar. Uma das mais importantes é a ganância: "Dentro de um grupo familiar, a ganância é responsável pelas piores brigas, por mais poder, mais dinheiro, mais status, mais direitos. Esse pecado atropela a competência. A ganância faz o ganancioso dar o passo maior do que as pernas. E, quando a esperteza é demais, engole o esperto."

Apesar das desavenças, a Sadia crescia. As exportações saltaram de 500 milhões de dólares em 1994 para 2,3 bilhões em 2007. E o seu valor de mercado passou de 450 milhões para 3,8 bilhões de dólares no final de 2007. Nesse ano, a companhia pagou 74 milhões de dólares em dividendos. O avanço financeiro, no entanto, não encontrava correspondência no negócio concreto da Sadia. Negócio que, segundo Attilio Fontana, era fazer salsicha.

Nesse mesmo período, começou a recuperação da sua maior concorrente, a Perdigão. Fundada pela família Brandalise, também de imigrantes italianos, a empresa estava à beira da falência em 1994, quando foi comprada por nove fundos de pensão, entre eles a Previ, dos funcionários do Banco do Brasil. Ironicamente, a Perdigão chegou a ser oferecida primeiro à Sadia, que não se interessou pelo negócio.

Para a presidência executiva da Per-digão, os fundos chamaram Nildemar Secches, um executivo egresso do bndes. Reorientada, a empresa atingiu o valor de 4,6 bilhões de dólares, em 2007, su-perando a Sadia pela primeira vez na história das duas companhias. No en-tendimento de seus fornecedores e dos grandes atacadistas, a Sadia, apesar de se sair melhor que a Perdigão em termos de variedade de produtos e marketing, continuava com uma gestão confusa.

O diretor-financeiro da empresa, Adriano Ferreira, por exemplo, se reportava ao presidente do conselho de administração, Walter Fontana, em vez de se subordinar diretamente ao presidente-executivo, Gilberto Tomazoni - o que era visto como uma aberração corporativa.

Hoje os sócios da Perdigão consideram Walter Fontana um excelente profissional na área de logística. E acham Luiz Furlan um empresário com bom trânsito junto a governos e associações de classe. Já Gilberto Tomazoni não desfruta de boa reputação. "Se nem a Sadia confiava nele, a ponto de desvincular a diretoria financeira da presidência executiva, por que nós confiaríamos?", explicou um sócio da Perdigão.

No entendimento da Perdigão, o maior erro de Tomazoni foi impor uma administração contrária aos princípios que nortearam a Sadia durante décadas. Ele era adepto de modismos administrativos, ditados por gurus corporativos. "Tomazoni contratou a consultora Betania Tanure e queria adotar uma política de resultados como a da Ambev, quando a cultura da Sadia era a do comprometimento", contou um ex-superintendente da empresa. Foi a época dos programas de treinamento em Atibaia, no interior paulista. "Eles ficavam lá andando de jipe, fazendo trilha, subindo em árvore, gastando uma fortuna, enquanto na fábrica nós tínhamos que economizar até nas luvas dos funcionários", disse o ex-superintendente.

Certa vez, Tomazoni convocou alguns de seus executivos, traçou um risco no chão e os desafiou: "Quem quer crescer com a Sadia quer ficar de qual lado do risco? Ou estão comigo ou estão fora." A ideia era replicar o exercício nas fábricas. "Queriam que fizéssemos isso com os peões", disse um superintendente da unidade de Chapecó. "Recusamos porque, por ser tão ridículo, era capaz de todos ficarem do lado errado da linha." Ao mesmo tempo em que acreditava na motivação, Tomazoni mal cumprimentava os funcionários quando visitava as fábricas. Isso era desagregador para uma companhia cujo dono e antigos diretores costumavam almoçar com os trabalhadores.

Os superintendentes e gerentes da Sadia passaram a reclamar da competição que foi criada entre as unidades. Eles eram obrigados a fazer relatórios intermináveis sobre o cumprimento de metas. "Ficávamos preenchendo papel em vez de acompanharmos a produção", disse um deles. A unidade que se saísse pior perdia os bônus, que eram repassados para as de melhor desempenho. O resultado foi que as unidades começaram a maquiar seus resultados, para não perder os bônus. A competição interna abalou a política de cooperação na qual a companhia se baseara durante décadas.

O economista Oscar Malvessi deixou a carreira de executivo, em 1998, para fazer doutorado em economia na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. Sua tese buscou estudar os motivos que fizeram com que as em-presas brasileiras perdessem valor, no final do século passado. Ele analisou dezenas de grandes companhias, entre elas a -Sadia e a Perdigão. Em 2002, mostrou as conclusões de seu trabalho ao conselho de administração da Sadia, que incluía então executivos de fora do clã. Na apresentação, Malvessi chamou a atenção para o excesso de operações financeiras feitas pela companhia. Demonstrou em um PowerPoint que desde 1996 o lucro da Sadia vinha, em grande parte, de transações com papel, e não mais com frango e peru.

O recurso às aplicações financeiras se deu quando o presidente do conselho era Luiz Fernando Furlan. Em 2003, ele deixou o cargo para se tornar ministro do Desenvolvimento de Luiz Inácio Lula da Silva. Antes de sair, ele fez cumprir o vaticínio de seu pai, em 1983: Osório voltou para a companhia como representante dos Furlan no conselho.

Oscar Malvessi fez mais duas apresentações na Sadia, a última em 2007. Nessa, disse que o lucro operacional - o que vem da venda dos produtos - representava 57% dos ganhos da empresa. Os outros 43% provinham de transações financeiras. "A Sadia estava totalmente fora da curva", me disse Malvessi, em agosto, em seu escritório, na avenida Paulista. Nas grandes companhias, os ganhos em operações com papéis não ultrapassam 10% do lucro total.

Para Malvessi, uma olhada ligeira nos números da indústria alimentícia era suficiente para perceber que havia algo de muito errado na Sadia: entre 2002 e 2007, as vendas da Perdigão haviam crescido 73% a mais que as da concorrente. "Todos estavam conscientes do risco que a Sadia corria", afirmou. "Quando acabei minha exposição, os conselheiros me olharam sem qualquer espanto. Como se tudo aquilo fosse a coisa mais normal do mundo."

Yara Fontana é uma mulher alta, sorridente e jovial. Seu sorriso desaparece quando comenta o desmanche da Sadia. Encontrei-me com ela em um restaurante, em São Paulo. Contou-me que, em 2007, num almoço familiar, teve uma discussão com seu irmão Eduardo, que ocupava a vice-presidência do conselho de administração, e questionou os ganhos anormais da companhia no mercado financeiro: "Ele me disse para eu não reclamar da administração da empresa porque nunca tínhamos ganhado tantos dividendos na vida."

O gestor de um grande fundo de investimentos me disse que a Sadia "era useira e vezeira" em fazer operações de risco. Perdeu muitas vezes, mas conseguiu escapar porque as crises não foram longas e nem profundas. "Eles jogavam muito com o caixa da empresa e todo o mercado sabia", disse. "Por isso, há muito tempo o meu fundo não operava mais com ações da companhia. Aquilo era crônica de uma morte anunciada."

Ao meio-dia de 12 de setembro do ano passado, Walter Fontana Filho reuniu-se com os executivos da cúpula da Sadia. O encontro foi na sala de reuniões do escritório central da empresa, em São Paulo. Os diretores se sentaram em volta de uma mesa de mármore negro para fechar a proposta de compra do frigorífico Frangosul, do grupo francês Doux, o maior produtor europeu de aves e embutidos. Havia um cartaz na parede com a política da companhia, assinado por Walter Fontana Filho. O primeiro compromisso era "contribuir para a sobrevivência da Sadia, pro-porcionando o retorno adequado dos investimentos". O valor de compra da Frangosul foi fechado em 1,2 bilhão de reais. A carta-proposta foi despachada naquele mesmo dia para Charles Doux, presidente da companhia na França.

No dia seguinte, às oito e vinte da manhã, o diretor-financeiro Adriano Ferreira entrou chorando na sala de Walter Fontana Filho. Disse-lhe para esquecer a compra da Frangosul e anunciou: havia perdido o controle das operações de câmbio e a Sadia estava com 5 bilhões de dólares a descoberto no mercado de derivativos. A empresa tinha fechado posições de câmbio a 1,60 real, apostando que o dólar não subiria. Mas, naquele dia, a moeda já havia ultrapassado 1,80 e essa diferença, pelo contrato com os bancos, tinha que ser paga em dobro. São as chamadas operações 2 por 1: a cada subida do dólar, a Sadia tinha que fazer um depósito na Bolsa de Mercadorias e de Futuros para honrar seus compromissos. Como era obrigada a zerar diariamente essas posições, o caixa da empresa e sua liquidez estavam ameaçados.

A Sadia sangrava desde o dia 8 de setembro, quando, com a implosão do mercado imobiliário americano, o dólar começara a subir. Mas Adriano Ferreira mantivera as perdas em sigilo, acreditando que o quadro reverteria. Já havia pago mais de 500 milhões de reais, usando o capital de giro da companhia. Naquele 12 de setembro, a Sadia estava à beira de ficar sem dinheiro em caixa.

Atônito, Walter Fontana Filho convocou uma reunião de emergência com o núcleo da direção. Foram chamados Cássio Casseb, ex-presidente do Banco do Brasil, Eduardo D Ávila, vice-presidente do conselho de administração, e Roberto Faldini, conselheiro responsável pelo comitê de auditoria. Vieram ainda José Antônio Gragnani, da corretora Concórdia, e João Ayres Rabello, um executivo contratado meses antes para ser presidente de um projeto que era a menina dos olhos da cúpula da empresa: a criação do Banco Concórdia. Antes mesmo da aprovação do Banco Central, os controladores da Sadia haviam providenciado uma sede monumental para a nova instituição, na Torre Eldorado, em São Paulo.

A equipe ficou reunida até as oito horas da noite, quando conseguiu reduzir a exposição da Sadia de 5 bilhões para 3,4 bilhões de dólares. João Rabello sugeriu que sacassem dos cofres da Fundação Attilio Fontana, que tinha um patrimônio de 1,5 bilhão de reais. O presidente da fundação, Darcy Primo, reagiu dizendo que ali ninguém colocava a mão: Attilio investira 30% de seu patrimônio pessoal para capitalizá-la. "Ele dizia que a fundação era a sua filha mais nova", contou um ex-diretor da companhia.

No sábado, dia 13, Walter Fontana convocou para a segunda-feira seguinte uma reunião extraordinária do conselho. No mesmo dia, Carla, a filha mais nova de Attilio Fontana e presidente do acordo de acionistas, foi avisada do rombo. Coube a ela contar aos outros herdeiros, muitos acima dos 80 anos e há décadas dependentes dos dividendos da companhia, que a Sadia estava à beira da falência. "Foi um choque para todo mundo", contou um dos herdeiros. "Como poderíamos imaginar que a maior empresa de alimentos do país tinha falido do dia para a noite? Era quase a história do Titanic."

Walter Fontana Filho foi obrigado a fazer o que jamais imaginara: pedir ajuda ao primo Luiz Fernando. Dono de 23% das ações da companhia, Furlan saíra do governo meses antes, não retornara à companhia e se envolvera num projeto ambientalista na Amazônia. Furlan estava no Japão, onde participava de uma reunião do conselho da Panasonic.

Nos dias que se seguiram, os executivos escalados por Walter se fecharam com Adriano Ferreira em sua sala para tentar entender o estrago. A cada chamada da bm&f - quando a empresa tinha que fazer novos depósitos em garantia -, eles se apavoravam com as dimensões do rombo. Um levantamento feito às pressas mostrava que a Sadia vinha tendo perdas desde dezembro de 2007. Mas foi em agosto de 2008 que as transações com derivativos saíram do controle. Uma das operações, com apenas um banco, o inglês Barclays, era de 720 milhões de dólares. O padrão das operações era 2 para 1, ou seja, quando perdia, a Sadia perdia em dobro. Só ao Barclays a Sadia teria de pagar 1,4 bilhão de dólares.

Depois de horas de conversas, o banco inglês concordou em desfazer a transação. Mas a Sadia precisou pagar uma multa de 150 milhões de reais. Em meados da semana do dia 15, o caixa da Sadia, que no começo do mês era de 1,8 bilhão de reais, minguara para 300 milhões. "A empresa estava entrando em colapso, e em pouco tempo quebraria por falta de capital de giro", contou um ex-diretor da companhia.

Para evitar a bancarrota, Cássio Casseb ligou para o presidente do Banco do Brasil e pediu uma linha de crédito emergencial. Naquela altura, com a quebra do Lehman Brothers, no dia 15, nos Estados Unidos, todas as linhas de crédito para o Brasil estavam fechadas. Só restava a ajuda dos bancos brasileiros. O Banco do Brasil aprovou um empréstimo de emergência de 911 milhões de reais. No dia 25 de setembro, quando foi assinado o contrato com o Banco do Brasil, a Sadia divulgou uma informação oficial - o "fato relevante" - estimando suas perdas, em derivativos, em 720 milhões de dólares.

Adriano Ferreira é um moreno alto de 39 anos. Encontrei-me com ele, em agosto, num casarão na avenida Brasil, em São Paulo. Ali funciona a assessoria de imprensa que ele contratou para ajudá-lo. Vestia calça bege e camisa listrada de vermelho e azul. Também estava presente um de seus advogados. Ao me dizer sua idade, Ferreira perguntou, de cara, preocupado: "Você acha que aparento 39 anos?" Respondi que parecia mais jovem. "Tem certeza que não fiquei enrugado?", insistiu. Diante da nova negativa, disse: "Ainda bem, porque com toda essa crise fiquei com medo de ter envelhecido."

Baiano, Adriano Ferreira formou-se em economia pela Universidade Católica de Salvador. Começou a carreira na empreiteira Odebrecht, como analista financeiro. Depois, mudou-se para Madri para trabalhar na Atento, uma empresa de call center da Telefónica de España, onde chegou a diretor de tesouraria. Voltou ao Brasil por pressão da mulher, advogada tributarista, que não queria mais morar no exterior. No final de 2002, logo após a eleição de Lula, foi contratado como gerente financeiro da Sadia, através de uma firma de head hunter.

"Um dos requisitos era ter boa experiência em operações financeiras porque a companhia tinha uma corretora de valores, a Concórdia, embaixo dela", disse. "Isso chamou minha atenção, porque não é comum uma indústria ter uma corretora." Na empresa, espantou-se com o fato de a Sadia ter uma grande quantidade de títulos brasileiros em sua carteira. "Estranhei porque, naquela época, com o medo que o mercado tinha do Lula, ninguém queria ter títulos brasileiros. Se a empresa precisasse de dinheiro, não ia poder dispor daqueles títulos." Uma das suas primeiras medidas, disse, foi diversificar a carteira de investimentos. "Não se pode colocar todos os ovos no mesmo cesto", explicou.

A Sadia tinha planos de dobrar de tamanho em cinco anos. Suas exportações cresciam aceleradamente por causa da doença da vaca louca na Europa, Canadá e Estados Unidos. Adriano Ferreira pegou uma folha de papel e rabiscou alguns números. "Quando eu entrei, a empresa faturava 6 bilhões de reais ao ano. Quando saí, faturava 12 bilhões", contabilizou, atribuindo ao seu trabalho grande parte desse sucesso.

Por que se atirou com tanta voracidade nos derivativos? "Era um período de bonança e os bancos começaram a oferecer diversos produtos financeiros", ele respondeu. "Todos eles foram testados e utilizados pela Sadia, mesmo porque a empresa tinha experiência nisso. Quem poderia imaginar que o mundo entraria em crise?" Em 2006, ele foi promovido a diretor-financeiro. "Tive diversas promoções", afirmou. Esteve no centro nervoso da companhia e, segundo conta, nunca teve sua estratégia contestada: "Decidimos expandir as atividades financeiras do grupo. O primeiro passo seria a abertura do banco. O estudo foi capitaneado por mim. Eu fora escalado para ser o supervisor da holding: a empresa, a corretora e o banco."

Tenso, Adriano Ferreira deu a sua versão para o setembro negro da Sadia. Disse que, desde o final de agosto, quando o dólar começou a subir, tentou se desfazer das operações de derivativos. Mas, com o agravamento da crise, no dia 8 de setembro, a situação se deteriorou rapidamente. No dia 25, ficou acordado até uma e meia da madrugada, tratando do empréstimo com o Banco do Brasil.

Às 8h30, voltou à Sadia para assinar o contrato. Ao meio-dia e meia, assim que saiu para almoçar recebeu um telefonema da secretária. Nervosa, ela contou que o pessoal da administração entrara na sua sala e levara seu computador. "Perdi o chão", contou ele. "Eu estava na empresa há seis anos. Era pessoa de confiança da família. Não tinha o menor sentido o que estavam fazendo comigo. Como, de uma hora para outra, eu posso ter virado um louco, um irresponsável?"

Ferreira não voltou à companhia naquele dia. No final da tarde, após a Sadia soltar o fato relevante, sua secretária voltou a ligar. "Ela me avisou que o teor da nota não era nada bom para mim", prosseguiu. "Eu não só fora demitido como estava sendo declarado culpado pela situação." Só no dia seguinte ele foi comunicado oficialmente da decisão anunciada na véspera ao mercado: "O Eduardo Fontana me chamou e me demitiu."

A Sadia acabou perdendo 2,5 bilhões de dólares com derivativos, na sua avaliação, devido à demora dos executivos em cancelarem as operações. Quando contou o problema para Walter Fontana Filho, no dia 12, Adriano disse ter sugerido que encerrassem todos os contratos antecipadamente. "Se tivéssemos feito isso, a perda para a companhia teria sido, no máximo, de 900 milhões de dólares", avaliou. Segundo ele, começou uma discussão em torno de duas alternativas. Uma era a antecipação dos contratos. A outra, aguardar mais um pouco para ver se o dólar caía.

"Era muita gente dando palpite, inclusive o Luiz Furlan", disse Ferreira. "Quanto mais tempo eles demoravam para tomar a decisão, mais o prejuízo aumentava. Eles encerraram os contratos só em dezembro, quando o dólar já estava na casa dos 2,50 reais. Saíram no pior momento. Por isso o prejuízo foi tão grande."

Ao tomar conhecimento da argumentação de Ferreira, um ex-diretor da Sadia reagiu: "Íamos pagar com o quê se a empresa não tinha caixa nem para honrar os compromissos com os produtores? Ele secou o caixa da companhia."

O administrador de um grande fundo de investimentos explicou-me que o problema das empresas que se metem a operar no mercado financeiro é a falta de conhecimento. "Os bancos e os gestores de recursos têm uma inteligência voltada unicamente para analisar essas operações. As empresas não. Cabe ao diretor-financeiro, que tem mil outras coisas para cuidar, ficar brincando de operador", afirmou.

Walter Fontana Filho foi afastado do comando da empresa no dia 4 de outubro do ano passado, menos de um mês após a história ter vindo à tona. Estava deprimido e 5 quilos mais magro. Coube a Luiz Fernando Furlan tomar a frente das negociações para tentar salvar a Sadia. Seu primeiro passo foi procurar Lula. O presidente prometeu ajudar. Mas não da forma como Furlan e os outros herdeiros da Sadia dese-javam: com um aporte de capital do bndes. A preocupação do governo era que, mesmo com apoio financeiro do banco, a Sadia ficasse vulnerável e fosse comprada por uma multinacional. Lula e seus assessores queriam evitar a quebra da empresa e, ao mesmo tempo, tirá-la das mãos dos Fontana e dos Furlan.

Luciano Coutinho, o presidente do bndes, começou a estudar a possibilidade da compra da Sadia pela Perdigão. Ele marcou uma reunião com Sérgio Rosa, o presidente da Previ - o fundo é o maior acionista da Perdigão -, na sede da entidade, no Rio. Sérgio Rosa mal podia acreditar que a Sadia estava lhe caindo nas mãos. Dois anos antes, a Perdigão tinha sido alvo de uma oferta hostil da concorrente. Ou seja, a Sadia saiu no mercado comprando ações da empresa para, dessa forma, se apropriar dela. Sérgio Rosa liderou, junto com os outros sócios, uma contraofensiva que barrou as pretensões da concorrente.

A tentativa de compra da Perdigão manchou a imagem da Sadia não só pelo fiasco da investida. Foi, principalmente, porque a empresa se envolveu em um grotesco caso de vazamento de informação. Dias depois da oferta hostil, descobriu-se que o então diretor-financeiro da Sadia, Luiz Murat, tinha comprado ações da companhia. Murat foi demitido, respondeu a processo na Comissão de Valores Mobiliários e na sec, a agência que controla o mercado financeiro americano. Foi condenado a pagar uma multa pelos dois órgãos. Teve ainda que se expor a uma constrangedora retratação. De pé, na frente de todo o conselho da companhia, confessou sua culpa, pediu desculpas e demitiu-se. Adriano Ferreira foi chamado para assumir o seu cargo.

Luiz Murat não foi o único punido. Examinando o movimento anormal de compras de papéis da Sadia e Perdigão no mercado americano, a sec chegou ao nome de Romano Ancelmo Fontana, filho de Ancelmo Fontana, um sobrinho de Attilio que estava na Sadia desde a fundação. Ancelmo Romano também comprou ações valendo-se de informações privilegiadas. Retratou-se e deixou a Sadia, criando mais constrangimentos para a família.

As investigações sobre o vazamento de informações ainda não se encerraram. A cvm averigua a compra, na mesma época, de ações da Perdigão no mercado internacional pela Coinvalores, de São Paulo. A empresa pagou 23 milhões de dólares pelas ações dois dias antes do anúncio da oferta hostil, e as revendeu por 28 milhões pouco depois. Um dos donos da Coinvalores é Fernando Telles, cunhado de Luiz Fernando Furlan.

Sérgio Rosa não esqueceu a investida da Sadia na Perdigão, mas as relações da Previ com a empresa já eram ruins há bem mais tempo. A Previ tinha uma participação de 5% na Sadia e, durante anos, tentou ter assento no conselho. A direção da Sadia usou de vários subterfúgios para evitar que isso acontecesse, até telefonar para outros acionistas minoritários pedindo que se juntassem para barrar a entrada da Previ. Por isso, quando a Previ exigiu uma assembleia extraordinária para ver as contas da Sadia, logo depois do escândalo dos derivativos, Luiz Furlan procurou Sérgio Rosa para pedir que ele não expusesse ainda mais a empresa, apontando culpados. Rosa concordou, mas quis que uma consultoria da sua confiança, a Trevisan bdo, assumisse o lugar da kpmg, escolhida pela Sadia, na auditoria das contas da empresa.

Depois da conversa com Luciano Coutinho, Sérgio Rosa telefonou para Nildemar Secches, presidente do conselho da Perdigão, e avisou que o governo queria que comprasse a Sadia. Secches convidou Walter Fontana Filho para um almoço no restaurante Le Coq Hardy, no Itaim, e lhe esboçou uma proposta. Dias depois, no começo de novembro, Nildemar Secches chamou Furlan para uma conversa e lhe propôs oficialmente a compra da Sadia. Furlan disse que não venderia a empresa. Explicou que ainda tinha esperanças de que o bndes injetasse dinheiro na companhia e virasse sócio. Não seria diferente do que o banco já fizera com dois frigoríficos, o JBS e o Bertin.

Do lado da Perdigão também se duvidava que o negócio pudesse ir adiante. "Achávamos que a Sadia resistiria", disse um sócio da Perdigão. "Ela ficaria menor, é claro, mas nunca imaginamos que acabasse vendida." Mas, assim como fizera nas telecomunicações, quando usou os fundos de pensão para forçar a venda da Brasil Telecom para a Oi, o governo Lula viu na crise da Sadia a oportuni-dade de criar uma grande empresa nacional, agora no setor de alimentos.

No dia 10 de dezembro de 2008, num outro encontro com Nildemar Secches, Furlan compreendeu que não tinha saída. Ao sair da reunião, ele telefonou para alguns familiares e disse: "O mistério está desvendado, o governo quer a fusão."

No dia 26 de dezembro houve mais uma reunião, para se acertar detalhes do negócio, dessa vez no bndes. Participaram Furlan, Secches, Walter Fontana e Luciano Coutinho. Secches saiu de férias e voltou em fevereiro. Nesse meio tempo, a Sadia foi procurada pela Tarpon, uma administradora de recursos, que queria entrar como sócia da empresa. A Tarpon se disporia a fazer a capitalização necessária para salvar a Sadia. Furlan reuniu-se com os acionistas e expôs a nova opção. A maioria decidiu pela fusão com a Perdigão. "Os herdeiros estavam exaustos, ninguém queria arriscar mais nada.", contou um deles.

No dia 27 de março passado, a Sadia anunciou seus resultados de 2008. Fechara o balanço com um prejuízo de 2,5 bilhões de reais, o primeiro em toda sua história. Em seguida, Furlan chamou os controladores para uma reunião. Yara Fontana compareceu à reunião no prédio da Fundação Attilio Fontana, na Vila Anastácio, em São Paulo, usando uma faixa preta como braçadeira, em sinal de luto. "É por causa do Corinthians?", perguntou-lhe Furlan, segundo ela, em tom de deboche. "Achei aquilo completamente desrespeitoso", disse Yara. "Tínhamos perdido a empresa fundada por nosso avô e o Luiz ficou ainda tentando fazer graça."

Em abril, uma assembleia da Sadia aprovou a abertura de processo contra Adriano Ferreira por perdas e danos. Ferreira reagiu e processou a empresa por danos morais. "É vergonhoso o que fizeram comigo", disse ele. "A direção e o conselho sabiam o que estava sendo feito. Todos os meses eu mandava relatórios explicando nossas posições. O comitê de risco tinha acesso on-line a tudo que estava sendo feito. Todo mundo estava muito feliz ganhando rios de dinheiro com os dividendos. Quando a farra acabou, trataram logo de arranjar um bode expiatório."

Para processar Adriano, a assembleia baseou-se em um relatório de 200 páginas feito pela Trevisan bdo, a auditoria contratada para analisar os estragos na Sadia. O relatório, que está em segredo de Justiça, sustenta que Adriano Ferreira, junto com o gerente financeiro Álvaro Ballejo Fiúza de Castro, fez operações num terminal de computador às quais os conselheiros e executivos não tinham acesso. Mas a auditoria critica o comando da companhia por não ter controlado os subordinados, já que as operações com derivativos estavam sendo feitas desde julho de 2007. A Perdigão, por exemplo, que recebera as mesmas propostas dos bancos, recusou-as por considerá-las muito arriscadas.

Também pesaram na decisão de processar Ferreira as declarações que ele e Ballejo de Castro teriam feito de próprio punho, antes de deixarem a empresa. Nas declarações, que estão depositadas em um cartório de São Paulo, ambos admitiriam ter feito as operações de forma a confundir a direção da companhia.

Num inquérito que corre em sigilo na cvm, Bruno Tsuji, ex-analista de tesouraria da Sadia, diz que Ballejo de Castro decompunha as operações com derivativos em diversos programas para que o sistema não detectasse os riscos reais das operações. Para isso, Adriano Ferreira e Ballejo de Castro usavam um endereço de e-mail da Bloomberg que não passava pelo sistema de mensagens corporativas da Sadia.

Ao saber que a Sadia decidira processar apenas Adriano Ferreira, Yara mandou, no mesmo dia, um e-mail para Welson Teixeira Junior, diretor de relações com os investidores da companhia, dizendo:

Foi com muita tristeza que vi o resultado da assembleia da Sadia na data de hoje, na qual foi responsabilizado pelos problemas financeiros ocorridos somente o senhor Adriano Ferreira. Jamais imaginei que a empresa fundada por meu avô fosse um dia imputar aos peões a responsabilidade que cabe aos patrões.

"O Adriano Ferreira pode ter cometido todos os erros, mas é inadmissível que tenham deixado a responsabilidade de um caixa de 12 bilhões de reais nas mãos de um executivo jovem e sem muita experiência", disse-me Yara. "O que todos os conselheiros estavam fazendo que não enxergaram isso? Ficavam sentados lá fazendo o quê?"

Adriano Ferreira continua desempregado. Sua mulher, grávida de gê-meos quando foi demitido, teve bebês prematuros, que passaram semanas no hospital. "Tudo aquilo foi um show de horrores", disse-me ele.

No dia 19 de maio, a fusão foi sacramentada. Surgiu a Brasil Foods, um gigante com 25 bilhões de reais em vendas, 10 bilhões em exportações, 4,2 bilhões em investimentos e 120 mil funcionários espalhados em 64 fábricas.

A Sadia ficou com 32% da nova empresa - sendo 12% da família - contra 68% da Perdigão. Coube a José Antônio Fay, da Perdigão, a presidência executiva. Furlan e Walter Fontana têm assento no conselho de administração. Depois da aprovação da fusão pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, em dezembro, um dos dois terá que sair. Antes disso, Osório, o pai de Luiz Fernando Furlan, lançará seu livro de memórias, no qual critica "a irresponsabilidade e a ganância na Sadia". O livro é editado pelo clã Furlan.

Concórdia reagiu mal ao anúncio de que a sede da Brasil Foods deverá ficar em Itajaí, também em Santa Catarina. Glaucemir Grendene, secretário de desenvolvimento da prefeitura, contou que 45% da arrecadação de Concórdia vêm da Sadia, que emprega 7 mil dos seus 70 mil habitantes. "Houve mudanças, outras empresas surgiram na cidade, mas a Sadia continua sendo a mãe de Concórdia", disse ele. "Não apenas os empregados e suas famílias, mas toda uma cadeia, que vai do produtor até o comércio, ainda depende da empresa."

Grendene disse que a fusão ainda não provocou impacto econômico: "O problema maior é psicológico. Os moradores tinham muito orgulho de a sede da Sadia ser aqui. Uma carteira de funcionário da Sadia abria portas do crédito mais do que qualquer outro documento. Há uma relação de amor muito forte com a empresa."

Quando o negócio foi fechado, a Sadia aunciou que a Fundação Attilio Fontana, que paga uma aposentadoria complementar aos funcionários, seria extinta. "Foi uma angústia", contou Agostinho Schiochetti, presidente da entidade. "Só agora conseguimos a garantia de que a fundação não vai acabar." Vittorio Galeazzi, que ouvia a conversa, esfregou a mão na calva e disse: "Não sei como permitiram entregar a Sadia para a Perdigão. Nós éramos os maiores. Os melhores. Ninguém podia competir com a gente. É tudo muito triste".


Matéria da Revista Piauí - Edição nº 38 - Novembro de 2009 - Paginas 26 a 34.

Por Consuelo Dieguez


"Esta empresa existe para vender frango, vender peru e vender salsicha", disse o fundador Atílio Fontana. "Se é pra fazer diferente, é melhor abrir um banco".




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Thursday, January 14, 2010

QUEM TEM MEDO DA VERDADE




Na antevéspera do Natal, quando já bimbalhavam os sinos, o presidente Lula ouviu em seu gabinete um tropel distante. Não eram as renas do bom velhinho. Era o som metálico dos cascos das montarias de seu ministro da Defesa e dos chefes das Forças Armadas, em marcha batida para emparedar o presidente na mais grave crise militar da República desde 1977, quando o presidente Ernesto Geisel demitiu o então ministro do Exército Sylvio Frota, num gesto implacável e temerário para conter o radicalismo da linha-dura do regime – que no espaço de três meses matou, sob torturas, o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Filho no DOI-CODI do II Exército, em São Paulo.

Desta vez ocorre o contrário. Os comandantes militares é que tentam enquadrar o presidente da República, ameaçando uma demissão coletiva contra o decreto presidencial que cria a Comissão Nacional da Verdade, destinada a investigar violações de direitos humanos e casos de tortura durante a ditadura militar (1964-1985).

Durante duas décadas, um aparato repressivo estimado em 24 mil agentes prendeu por razões políticas cerca de 50 mil brasileiros e torturou algo em torno de 20 mil pessoas – três a cada dia. Os militares já tinham reagido mal, em agosto de 2007, quando o Palácio do Planalto lançou o livro Direito à Memória e à Verdade, um corajoso trabalho de 11 anos da Secretaria de Direitos Humanos, iniciado ainda no governo FHC, reconhecendo pela primeira vez a responsabilidade do governo na violência oficial, com a lista de 339 mortos e desaparecidos pela repressão política. Acintosamente, nenhum chefe militar compareceu à cerimônia presidida pelo comandante-em-chefe das Forças Armadas, o presidente Lula.

Paz de cemitérios

O azedume das casernas, antes e agora, já era esperado. Mas o que surpreendeu, de fato, foi o cerrado bombardeio que o Plano Nacional de Direitos Humanos atraiu de setores tradicionalmente mais esclarecidos da opinião pública nacional. Editoriais da grande imprensa, articulistas de renome e blogueiros influentes cerraram fileiras contra a idéia da Comissão da Verdade, vocalizando sem ressalvas os temores soprados, em tom de velada ameaça, pelos quartéis e suas vivandeiras de sempre.

O quadro alarmista desenhado pela reação em bloco exibia um futuro preocupante: um Brasil outra vez conflitado, dividido, mergulhado no revanchismo, tentando acertar as contas do passado com uma calculada revisão da Lei da Anistia de 1979, manipulada por ex-terroristas hoje encastelados no governo em busca de vingança pessoal contra os responsáveis pelos maus-tratos sofridos na prisão. Placas de ruas e escolas com nomes de torturadores seriam varridos do mapa nacional e agentes da Polícia Federal invadiriam quartéis em busca de covas clandestinas de mortos pela repressão. Tudo isso conspirando contra o pacto de concórdia estabelecido há três décadas para consagrar o Brasil tolerante e pacífico que prefere perdoar e esquecer. Será?

A alvoroçada mídia nacional deixou passar, em branco, algo bem mais grave: a tripla transgressão funcional do presidente, do ministro e dos chefes militares. Lula pela omissão: mais preocupado com o degelo do planeta em Copenhague do que com o aquecimento dos quartéis em Brasília, reconheceu não ter lido a lei que assinou – uma versão escrita do tradicional "eu não sabia". Nelson Jobim como trapalhão: apesar do corpanzil de quase 1,90m, não cresceu o bastante para entender o papel institucional de seu posto, como ministro da Defesa que deve exercer a autoridade da sociedade civil sobre as Forças Armadas, e não o contrário. Os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica pela insubordinação: peitaram uma decisão de governo anunciada em ato público por seu comandante-em-chefe, a quem devem irrestrita obediência por imposição constitucional.

Trombaram de frente com os fatos e com colegas de governo. O secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, foco central da ira militar, explicou: "O PNDH não é contra a Anistia. Não anula, nem revisa a lei. O projeto diz que a Comissão da Verdade será definida `nos termos definidos pela Lei da Anistia´. Está lá na ação 23 do texto. Basta ler", diz Vannuchi.

Seu chefe e principal aliado, o ministro Tarso Genro, da Justiça, ecoa: "No regime militar nenhuma norma, nem o AI-5, permitia a tortura. Este delito não é político, é comum". Esse é o miolo da divergência, que justifica a ação da Ordem dos Advogados do Brasil no Supremo Tribunal Federal para definir o alcance da anistia. "O Brasil não pode se acovardar e querer esconder a verdade. Anistia não é amnésia", ensina Cézar Britto, presidente da OAB.

O jurista Paulo Brossard discorda: "Os efeitos da anistia se fizeram sentir quando a lei entrou em vigor. O próprio delito é apagado". O ex-ministro do STF, que foi um bravo senador do MDB na sangrenta década de 1970, nem sempre foi tão legalista. "Nunca desejei [o golpe de] 1964, mas achei que foi absolutamente normal, porque foi a legítima defesa de uma sociedade então diretamente ameaçada", admite ele em seu livro de memórias, Brossard – 80 anos na história política do Brasil (Artes & Ofícios, 2004, p. 126). No artigo publicado em Zero Hora na semana passada, Brossard explica porque considera a anistia irreversível: "Anistia pode ser mais ou menos injusta, mas não é a justiça seu caráter marcante. É a paz".

Paz de quem, cara-pálida? Certamente não é a paz de cemitério dos mortos pela tortura, nem a paz de espírito dos parentes de desaparecidos políticos, muito menos a paz da consciência de quem sobreviveu aos suplícios e aos gritos de dor nas masmorras.

"Responsabilidade do Estado"

A lei de anistia que Brossard tanto preza não é fruto do consenso de um país sentado em torno da mesa do entendimento. É mais a entrega dos anéis da ditadura para não perder os dedos manchados de sangue. Pressionado pelo clamor cada vez mais forte das ruas em 1979, o general João Figueiredo negociou, de cima para baixo, a anistia que parecia mais conveniente ao regime. A esquerda, derrotada na luta armada, presa ou exilada, não tinha muito o que exigir, a não ser a benevolência do regime militar, que ainda duraria mais seis anos. Engoliu uma anistia enxertada pelos quartéis com uma blindagem ampla e vaga, diluída na expressão "crimes conexos", que deveria cobrir os delitos de sangue dos torturadores.

Um dos ministros de Figueiredo que assina a lei, em 29 de agosto daquele ano, é o general Octávio Aguiar de Medeiros, chefe do SNI, que ainda sonhava com a sobrevida do regime e sua unção como o sexto presidente da ditadura. O terrorismo que se via no país, naqueles dias, era só o da direita, que incendiava bancas de jornais e explodia bombas em organizações que clamavam por democracia, como a sede nacional da OAB.

Na véspera do Dia do Trabalho de 1981, dois anos após a promulgação da anistia, um Puma explodiu antes da hora no Riocentro. Tinha a bordo dois agentes terroristas do Exército: um sargento que morreu com a bomba no colo e um capitão do DOI-CODI que sobreviveu impune e virou professor do Colégio Militar em Brasília. Um inquérito policial-militar do Exército apurou que o atentado foi planejado pelo chefe da agência do SNI no Rio, coronel Freddie Perdigão. Outras vítimas daquele desastrado `acidente de trabalho´ ficaram pelo caminho: o projeto presidencial de Medeiros, o coração enfartado de Figueiredo e as chances de prorrogação da ditadura.

Figueiredo e a ditadura saíram do Palácio do Planalto pela porta dos fundos, em 1985, para não devolver a faixa presidencial usurpada ao poder civil em 1964. O novo presidente, José Sarney, assinou em 1989 a adesão do Brasil ao tratado internacional que considera a tortura um crime de lesa-humanidade e, como tal, imprescritível. Apesar disso, ninguém passou pelo dissabor de uma condenação que hoje é comum nos outros países do Cone Sul.

A única exceção é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado em primeira instância em São Paulo numa ação que pretende apenas declará-lo como "torturador". Méritos não lhe faltam: como major, ele montou e dirigiu o centro de repressão e tortura mais famoso do regime, o DOI-CODI da Rua Tutóia, em São Paulo. Nos 40 meses em que comandou aquele antro, segundo levantamento da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, Ustra amargou 502 denúncias de tortura (uma a cada 60 horas) e 40 mortes (uma por mês).

Na defesa perante a Justiça, o valente Ustra preferiu chutar a responsabilidade para cima:

"O Exército brasileiro é uma pessoa jurídica, sendo que, pelos atos ilícitos, inclusive os atos causadores de dano moral, praticados por agentes de pessoas de direito público, respondem estas pessoas jurídicas e não o agente contra o qual têm elas direito regressivo. (...) Todas as vezes que um oficial do Exército brasileiro agir no exercício de suas funções estará atraindo a responsabilidade do Estado".

Brasil varonil

A Rua Tutóia e o coronel Ustra remetem a uma tragédia ainda maior: a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A maior catástrofe do planeta envolveu 100 milhões de militares de 72 nações dos cinco continentes, matando 70 milhões de pessoas (as populações somadas de Argentina e Canadá) e mutilando quase 30 milhões. Custou cerca de US$ 1,5 trilhão, quase tanto quanto Barack Obama injetou na economia para salvar bancos e montadoras de carros. As potências vencedoras acharam por bem punir o responsável direto por tudo isso, o III Reich de Hitler. O líder soviético Josef Stálin tinha uma solução curta e grossa: matar todos os nazistas envolvidos direta ou indiretamente com a guerra. No cálculo dos aliados, isso significaria mais de 100 mil execuções do aparato estatal hitlerista – três vezes mais do que os mortos em Dachau, o primeiro campo de concentração nazista, na periferia de Munique.

Venceu a solução mais civilizada: o Tribunal de Nuremberg, que gastou 285 dias de julgamento para ouvir 240 testemunhas e anotar 300 mil declarações, gerando um sumário de 4 bilhões de palavras. A acusação final de 25 mil páginas aos principais dirigentes nazistas condenou 12 à morte, três à prisão perpétua e outros três a penas entre 10 e 20 anos de cadeia. Três foram absolvidos. A defesa alegou em Nuremberg o mesmo ponto levantado em São Paulo: a `obediência devida a ordens superiores´. O que o juiz americano Francis Biddle respondeu serve, portanto, também ao coronel Ustra: "Os indivíduos têm deveres internacionais a cumprir, acima dos deveres nacionais que um Estado particular possa impor", disse Biddle.

Nuremberg cravou para sempre, na consciência do mundo civilizado, a noção pioneira de que os fundamentos da pessoa humana estão acima das circunstâncias políticas e além das fronteiras nacionais. Foi por isso que o braço longo do juiz espanhol Baltazar Garzón alcançou o ditador chileno Augusto Pinochet em Londres, por crimes de tortura e assassinato. A defesa do III Reich tentou levantar um princípio que impediria o julgamento de fatos pretéritos (ex post facto), alegando que não havia na lei previsão anterior para os crimes sob juízo.

Prevaleceu o fato e o bom senso de que lei nenhuma no mundo tinha imaginado, como política de Estado, uma escala tão vasta de genocídio como a arquitetada com frieza pelo engenho nazista nos seus campos de concentração, onde morreram seis milhões de judeus. Se valesse o argumento de Ustra em Nuremberg, para escapar da cadeia bastaria dizer que todos os nazistas apenas cumpriam ordens de Adolf Hitler... O argumento não colou lá, mas parece ter bons resultados aqui. Ninguém é sequer denunciado no Brasil e, quando isso acontece, o coronel Ustra diz que os excessos que eventualmente cometia eram responsabilidade do Estado.

O ministro Tarso Genro e os tratadistas mais renomados do país lembram que os atos de exceção mais duros tiveram o cuidado de nunca mencionar, muito menos autorizar a tortura. É um crime, portanto, sem pai nem mãe. Anistia não é esquecimento, é perdão, ensinam os juristas que não escamoteiam as palavras. Não se pode esquecer o que não se conhece. Também não se pode perdoar o que não foi punido – privilégio imaculado de todos os torturadores que ainda existem no país. O historiador americano Edward Peters, professor da Universidade da Pensilvânia, advertiu: "O futuro da tortura está indissoluvelmente ligado ao futuro dos torturadores".

Ou seja, a impunidade do torturador acaba garantindo a perenidade da tortura e de sua filha dileta, a violência. O Brasil que evita punir ou sequer apontar seus torturadores acaba banalizando a violência que transborda a ditadura e vitimiza o cidadão comum em plena democracia, principalmente nas duas maiores capitais, São Paulo e Rio. Nos 24 anos seguintes à anistia (1979-2003), armas de fogo mataram no Brasil 550 mil pessoas – 44% delas jovens entre 15 e 24 anos. Este Brasil varonil, pacífico e cordial, viu morrer quase tanta gente quanto os Estados Unidos durante os cinco anos que lutou na Segunda Guerra Mundial (625 mil soldados). Num único ano, 2003, segundo dados do Ministério da Saúde, assassinaram no Brasil uma população civil (51 mil pessoas) quase tão grande quanto as perdas dos Estados Unidos (58 mil) ao longo dos 16 anos da Guerra do Vietnã.

Último ditador

É difícil dizer quanto desta violência tem linha direta com a tortura da ditadura que ficou impune como seus responsáveis. Mas, com certeza, quem mata e tortura hoje tem o bom exemplo dos antecessores que se mantêm ilesos e protegidos. Mais difícil ainda é explicar o sentimento de solidariedade que transforma os atuais comandantes militares do Brasil em leais companheiros de velhos criminosos de um golpe militar que completa, agora, 46 anos.

Nenhuma camaradagem pode haver entre gerações tão distintas de militares, tão distantes do arbítrio. Capitães, majores e tenentes-coronéis de hoje, nas três Armas, nem tinham nascido quando os militares invadiram os porões dos anos 1970 para executar o terrorismo de Estado que combatia ferozmente a esquerda armada. O melhor exemplo é a ficha funcional dos atuais chefes das Forças Armadas brasileiras, todos amadurecidos profissionalmente no regime democrático que agora chega aos 25 anos de vida.

O comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, é de um ramo "técnico" da força terrestre, a Engenharia. Era segundo-tenente, aos 23 anos, quando veio o golpe de 1964. Entre as vésperas da quartelada e o agitado ano de 1968, Peri hibernou num burocrático batalhão de engenharia no Rio de Janeiro. Teve uma rápida passagem pela 2ª Seção (área de informação) do discreto 1º Grupamento de Engenharia e Construção de João Pessoa (PB), no governo de Ernesto Geisel. Atravessou a turbulenta década de 1970 como major. Só chegou ao generalato em 1995, no governo FHC, sem nunca ter sujado as mãos com a repressão.

O comandante da Marinha, almirante Júlio Soares de Moura Neto, ainda era um garoto quando veio o golpe de 64, onze dias após completar 21 anos. Quase cinco meses após a queda de João Goulart é que Moura Neto vestiu a farda, como guarda-marinha. Nos anos de chumbo da década de 1970, manteve sua ficha politicamente alva como o uniforme de capitão-de-corveta. Chegou ao almirantado no governo FHC, em 1995.

O comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, virou aspirante da FAB no final de 1965, 19 meses após o golpe militar. Chegou a capitão em 1971 e terminou a década maldita como major, sem jamais sobrevoar a área mais radical da Aeronáutica incendiada pelo radical brigadeiro João Paulo Burnier. Foi promovido a coronel no governo Sarney, em 1988, e chegou a brigadeiro com FHC em 1995.

Na ficha funcional dos três, portanto, não existe razão nenhuma para justificar a reação corporativa em defesa de gente que manchou a farda com a tortura. A justa compreensão do processo histórico que exige o conhecimento do passado faria muito bem aos três chefes das Forças Armadas, que têm compromisso com o país e a Constituição que juraram defender – não com os radicais do passado que temem os efeitos sanitários de uma Comissão da Verdade. Não há motivos, portanto, para se sentirem ofendidos com algo que é uma exigência moral de um país que precisa confrontar sua história para conhecer melhor seu destino. É pura bobagem imaginar que uma onda de revisionismo irá faxinar recantos do país com nomes de torturadores ou chefes da ditadura.

O general Garrastazú Médici, o presidente popular da fase mais sangrenta do regime militar (1969-74), quando o coronel Ustra brilhava na Rua Tutóia, é nome de cidade em Rondônia e no Maranhão, avenida em Osasco (SP), bairro em Chapecó (SC), rua em São Luís (MA), conjunto residencial no Rio (RJ). O senador Filinto Muller, o chefe da truculenta polícia política da ditadura de Getúlio Vargas e que remeteu em 1936 a judia alemã Olga Benário (a mulher grávida de Luís Carlos Prestes) para a morte num campo de concentração de Hitler, espraia-se pelo país: é nome de sete escolas em três estados, batiza três ruas e uma avenida. Muller ainda tem direito a busto na ala de gabinetes que leva seu nome no Senado Federal. É inútil imaginar que um suposto revanchismo tente revogar, agora, estes endereços e homenagens.

Em vez de se acovardar com fantasmas de um passado que se deve conhecer, não temer, o ministro Jobim e os chefes militares deveriam se inspirar no exemplo de coragem da Argentina, que tem um contencioso de violência e morte muito mais sangrento do que o Brasil. Lá, sem medo de revanche, o governo de Néstor Kirchner (2003-07) revogou, com o apoio da Suprema Corte, as duas indulgentes leis de anistia – o Ponto Final e a Obediência Devida – concedidas pelo presidente Raúl Alfonsín (1983-89).

A justiça argentina neste momento processa 263 militares e policiais por crimes contra direitos humanos. O general que deu o golpe em 1976, Jorge Rafael Videla, 85 anos, foi condenado à prisão perpétua e cumpre prisão domiciliar, assim como o último presidente da ditadura, o general Reynaldo Bignone. No Uruguai, o último ditador, general Gregório Alvarez, foi condenado em 2009 a 25 anos de prisão pela morte de 37 opositores – três a menos do que o número de vítimas do DOI-CODI da Rua Tutóia sob o comando do coronel Ustra.

Sem medo, sem culpa

Lula, Jobim e os ministros militares poderiam ganhar alento na figura nobre de Martín António Balza, um general de porte altivo e fala serena, que comandou o Exército da Argentina de 1991 a 1999, durante os dois mandatos do presidente Carlos Menem. Vinha da Artilharia com especialização em guerra de montanha. Como tenente-coronel, participou em 1982 da Guerra das Malvinas comandando um grupo de artilharia. Foi preso pelos ingleses e, pela bravura que os generais de Buenos Aires não tiveram, recebeu a Medalha de Mérito do Exército.

Seu ato mais notável, no entanto, foi a espantosa aparição que fez na noite de 25 de abril de 1995 em Tiempo Nuevo, o programa de entrevistas mais importante da TV argentina, apresentado pelo jornalista Bernardo Neustadt. Com o uniforme cáqui de comandante e os cabelos brancos aos 61 anos, Balza iniciou um inesperado mea-culpa que emocionou o país, ainda traumatizado pelos 18 mil desaparecimentos oficialmente reconhecidos (30 mil para entidades de direitos humanos) nos anos da "guerra suja", entre 1976 e 1983.

Tirou um papel do bolso e, com voz firme, carregada de convicção, leu um texto que poderia ser a leitura de um general sobre o Brasil. Fala Balza:

"Quero iniciar um diálogo doloroso sobre o passado, um diálogo doloroso que nunca foi mantido e que se agita como um fantasma sobre a consciência coletiva, voltando estes dias irremediavelmente das sombras onde ocasionalmente ele se esconde. Nosso país viveu a década de 70, uma década assinalada pela violência, pelo messianismo e pela ideologia. Sem buscar palavras inovadoras, mas apelando aos velhos regulamentos militares, aproveito esta oportunidade para ordenar uma vez mais ao Exército, na presença de toda a sociedade: ninguém está obrigado a cumprir uma ordem imoral ou que se afaste das leis e dos regulamentos militares. Quem o fizer incorre em uma conduta viciosa, digna da sanção que sua gravidade requeira. Sem eufemismos, digo claramente:

"Delinque quem vulnera a Constituição nacional. Delinque quem emite ordens imorais. Delinque quem cumpre ordens imorais. Delinque quem, para cumprir um fim que crê justo, emprega meios injustos e imorais. A compreensão desses aspectos essenciais faz a vida republicana de um Estado. Compreender isto, abandonar definitivamente a visão apocalíptica, a soberba, aceitar o dissenso e respeitar a vontade soberana...

"Esse é o primeiro passo que estamos dando há muitos anos para deixar o passado para trás, para ajudar a construir a Argentina do futuro, uma Argentina amadurecida na dor, que possa chegar algum dia ao abraço fraterno. Se não pudermos elaborar a dor e cicatrizar as feridas, não teremos futuro. Não devemos mais negar o horror vivido, e assim poder pensar em nossa vida como sociedade que avança, superando a pena e o sofrimento.

"Em nome da luta contra a subversão, o Exército derrubou o governo constitucional e se instalou no poder em forma ilegítima, num golpe de Estado. Venho pedir perdão por isso e assumir a responsabilidade política pelo desatino cometido no passado. No poder, o Exército cometeu ainda outros delitos. O Exército prendeu, sequestrou, torturou e assassinou – tal qual o fizeram os delinquentes subversivos – e muitos de seus membros viraram delinquentes como eles".

A Argentina, espantada e emocionada, engoliu em seco. Era a primeira vez que um general dizia, com clareza e contundência, o que o país comentava entre si, num sussurro sofrido e ainda sobressaltado. O ato de contrição liberou e animou os outros dois chefes militares. Dias depois, o comandante da Força Aérea admitiu os mesmos excessos, sucedido pelo comandante da Marinha, patrona do maior emblema da repressão no país – a ESMA, Escola de Mecânica da Armada. Em 2004, o prédio em estilo clássico emoldurado com quatro esguias colunas de mármore branco, na elegante Avenida Libertador, em Buenos Aires, foi reformado e transformado no "Espaço para a Memória e a Promoção e Defesa dos Direitos Humanos". Está aberto ao público desde 2007. Em dezembro passado, coroando esta fase de dignidade nacional, começou o julgamento de 19 militares da Marinha acusados de crimes contra a humanidade cometidos no interior da ESMA.

O histórico depoimento do general Martín Balza produziu um efeito profundo no país e nas Forças Armadas argentinas, lembra o jornalista brasileiro Flávio Tavares, que foi correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires nos anos de chumbo:

"Sem que o próprio presidente Carlos Menem soubesse, o general Balza fez o mea-culpa e iniciou o processo de sinceramiento, como se chama na Argentina a essa catarse da instituição militar. Com isso, libertou milhares de oficiais das Forças Armadas do pesadelo de terem de assumir como próprios os delitos cometidos por uma minoria no Exército, na Marinha e na Aeronáutica.

"Esse processo de sinceramiento, a decisão de nada ocultar, reaproximou as Forças Armadas e a população, suplantando desconfianças e temores. Recordo ainda que, após a entrevista de arrependimento de Balza, uma jornalista argentina – com familiares assassinados pela ditadura – aproximou-se sorrindo, estendeu a mão e lhe disse:

– Pela primeira vez posso apertar a mão de um general sem ter medo ou culpa."

Um diálogo tão doloroso, numa nação tão machucada como a Argentina, mostra que o tema da anistia e do perdão depende, às vezes, da palavra certa e muito da vontade política. E precisa ainda mais de coragem, que até agora não irrompeu no Alto Comando do Brasil. Não é difícil imaginar o efeito regenerador que uma declaração do general Enzo Peri, com este conteúdo, teria na história brasileira, reconciliando militares e suas vítimas pelo simples reconhecimento da culpa. É um gesto penoso, resignado, contrito, mas de insuperável grandeza. É difícil e ao mesmo tempo simples. Portanto, possível.

Quando assumiu o posto de ministro da Defesa, num momento em que o país vivia o apagão aéreo que convulsionava os aeroportos, Nelson Jobim fez uma conclamação que impressionou pelo arrojo, pela determinação:

– Aja ou saia, faça ou vá embora!

O Brasil gostaria de apertar a mão dos seus generais, sem medo ou culpa.

Basta agir e fazer, ministro Jobim! Ou, então, saia. Vá embora.


Por Luiz Cláudio Cunha


Só as feridas lavadas cicatrizam. (Michelle Bachelet, médica, torturada em 1975, presidente do Chile em 2006)