Saturday, August 16, 2008

Abandonada no Campo de Centeio

Ex-namorada de Salinger revela esquisitices
do autor em um volume de memórias




Depois de passar vários anos lidando com a rejeição de editores, o escritor americano J.D. Salinger finalmente conseguiu publicar seu primeiro livro em 1951. O romance se chamava O Apanhador no Campo de Centeio e, para surpresa dos detratores do autor, transformou-se instantaneamente em clássico. Com seu protagonista rebelde, sua linguagem coloquial, seu retrato saboroso da idade dos distúrbios hormonais, o romance ganhou os adolescentes do mundo assim como O Pequeno Príncipe arrebata legiões de leitores infantis. Mas, em vez de saborear o sucesso, Salinger disse basta. Corria o ano de 1965 quando ele fechou a porteira de seu rancho na cidadezinha de Cornish, trancou seus inéditos num cofre e não deu mais notícias ao mundo. Nenhuma obra sua foi publicada desde então. Imprensa, reportagens, fãs — adeus! A curiosidade alheia se tornou o flagelo de Salinger, que luta com unhas e dentes para defender sua privacidade diante da ameaça dos bisbilhoteiros. Há dez anos, por exemplo, um estudioso descobriu algumas de suas cartas de juventude. Salinger o processou e impediu que as publicasse. No próximo mês de outubro, porém, uma obra cheia de revelações bombásticas deverá vir à luz. Sua autora é Joyce Maynard, ex-namorada do famoso recluso. E será difícil pará-la. "Tivemos todos os cuidados legais", diz Linda McFall, executiva da editora Picador, que prepara o lançamento de At Home in the World (Em Casa no Mundo) nos Estados Unidos.

O romance entre Joyce e Salinger durou só nove meses, entre 1972 e 1973. Quando começou, ela não era mais que uma ninfeta de QI elevado. Tinha 18 anos, era caloura da Universidade Yale e havia escrito uma reportagem de capa para a revista do New York Times. O artigo causou frisson. Entre as mensagens de elogio, surpresa: uma carta de J.D. Salinger, a estrela da ficção americana, um dos 25 autores mais lidos na história do país. Os dois engrenaram na troca de correspondência. Salinger, com 53 anos, pedia que ela o chamasse de Jerry e dissertava sobre homeopatia e enlatados de TV. Depois de alguns meses, Joyce mudou-se de mala e cuia para a fazenda de Cornish. Nos episódios do livro que foram antecipados, Salinger aparece alternadamente como um homem gentil e cruel, esquisito e implacável.

A gentileza se manifesta no tato com que ele reagiu a certos problemas de sua amada, que a impediam de consumar o ato sexual. A crueldade, na maneira seca com que pronunciava frases do tipo: "Você está ridícula". A esquisitice tinha a ver com seus hábitos: ele causava vômitos em si mesmo (e em Joyce) cada vez que tinha de ingerir alimentos "impuros", fazia sessões diárias de meditação e era adepto de terapias alternativas. Mas sua obsessão era mesmo a privacidade. Salinger dizia a Joyce que publicar livros era um "negócio sujo" e por isso escondia no cofre dois romances já terminados. Quando sentiu que a presença da moça punha em perigo seu santuário, foi inflexível. Mandou-a embora. Ponto.

Ao revelar esses fatos, Joyce Maynard alimenta a bolsa de fofocas, mas acrescenta pouco à compreensão literária de seu ex-par romântico. No máximo demonstra que ele deixou para trás os bons sentimentos contidos em O Apanhador no Campo de Centeio. Afinal, o romance afirma: "Bom mesmo é o livro que, quando a gente acaba de ler, faz com que queiramos ser um grande amigo do autor, para poder telefonar para ele toda vez que der vontade". Nem pense nisso com Salinger.

Saturday, August 09, 2008

Por uma sociedade justa e eficiente - Stephen Kanitz - Veja

Que sociedade é mais justa, aquela que valoriza as boas
intenções e o esforço ou aquela que valoriza os resultados?
Uma boa pergunta para começar a discutir no retorno às aulas







No primeiro ano de faculdade aprendi um truque que muito me auxiliou na hora de obter notas melhores. Descobri que, numa prova na qual cai um tema que você não estudou, que o pegou de surpresa, sobre um assunto de que você não sabe absolutamente nada, o melhor é não entregá-la em branco, que seria a coisa mais lógica e correta a fazer. Nessas horas, escreva sempre alguma coisa, preencha o papel com abobrinhas, pois, quanto maior o número de páginas, melhor. Isso porque existem dois tipos de professor no Brasil: um deles é formado pelos que corrigem de acordo com o que é certo e errado. São geralmente professores de engenharia, produção, direito, matemática, recursos humanos e administração. Escrever que dois mais dois podem ser três ou doze, dependendo "da interpretação lógica do seu contexto histórico desconstruído das forças inerentes", não comove esse tipo de professor. Ele dá nota dependendo do resultado, e fim de papo.

Mas, para a minha alegria, e agora também para a sua, existe outro tipo de professor, mais humano e mais socialmente engajado, que dá nota segundo o critério de esforço despendido pelo aluno e não apenas pelo resultado. Se você escreveu dez páginas e disse coisas interessantes, mesmo que não pertinentes ao tema, ficou as duas horas da prova até o fim, mostrou esforço, ganhará uns pontinhos, digamos uma nota 3 ou até um 3,5. O que pode ser a sua salvação. Na próxima prova você só precisará tirar um 6,5 para compensar, e não uma impossível nota 10. Se você estudar um mínimo e usar esse truque, vai tirar um 5.

Uma vez formados, os alunos desse tipo de professor são muito fáceis de identificar. Seus textos são permeados de abobrinhas e mais abobrinhas, cheios de platitudes e chavões. Defendem que a renda deve ser distribuída pelo esforço, e não pelo resultado, e que toda criança que compete deve ganhar uma medalha. Defendem que todo professor de universidade deve ganhar o mesmo salário, independentemente da qualidade das aulas, e que a solução para a educação é mais e mais verbas do governo, sem nenhuma avaliação de desempenho.

Esses dois tipos de professor obviamente não se bicam. É a famosa briga da turma da filosofia contra a turma da engenharia. São as duas grandes visões políticas do mundo, é a diferença entre administração pública e privada. O que é mais justo, remunerar pelo esforço de cada um ou pelos resultados alcançados? O que é mais correto, remunerar pela obediência e cumprimento de horário ou pelas realizações efetivas com que cada um contribuiu para a sociedade?

Como o Brasil ainda não resolveu essa questão, não podemos discutir o próximo passo, que são as injustiças da opção feita. É justo só remunerar pelo resultado? É justo remunerar somente pelo esforço? Podemos até escolher um meio-termo, mas qual será a ênfase que daremos na educação dos nossos filhos e na avaliação de nossos trabalhadores? Ao esforço ou ao resultado?

Quem tentou ser útil à sociedade mas fracassou teria direito a uma "renda mínima"? É justo dar 3,5 àqueles cujo esforço foi justamente enganar seus professores e o "sistema"? Não seria justo dar-lhes um sonoro zero? Precisamos optar por uma sociedade justa ou por uma sociedade eficiente, ou podemos ter ambas?

Como aluno, eu tive de me esforçar muito mais para as provas daqueles professores carrascos, que avaliavam resultados, do que para as provas dos professores mais bonzinhos. Quero agradecer publicamente aos professores "carrascos" pela postura ética que adotaram, apesar das nossas amargas críticas na época. Agora entendo por que tantos de nossos cientistas e professores pertencem à Academia de Letras, por que somos o último país do mundo em termos de patentes, por que tantos brasileiros recebem sem contribuir absolutamente nada para a sociedade e por que nossos políticos falam e falam e não realizam nada.

Que sociedade é mais justa, aquela que valoriza as boas intenções e o esforço ou aquela que valoriza os resultados? Uma boa pergunta para começar a discutir no retorno às aulas.

Monday, August 04, 2008

Sobre o meu pai Arthur - Lya Luft






"Seu olho verde faiscava de brabeza ou transbordava
de afeto. O rumor de seu passo no corredor botava o
meu mundo em ordem. Sua risada era aberta e franca,
seu abraço era cálido, sua alegria, generosa"



Nesta coluna homenageio meu pai Arthur, que morreu quando eu tinha 35 anos, e de quem, 35 depois, ainda recordo todos os dias, pelo seu legado de carinho, justiça, integridade e proteção, que até agora me dá força quando preciso dela (preciso muitas vezes). As propagandas em torno do Dia dos Pais, se irritam pela comercialização (para quem deseja isso) em torno do afeto, servem de lembrete a quem anda esquecido do seu pai.

Então tenho lembrado com mais intensidade do meu, que era severo e terno. Seu olho verde faiscava de brabeza ou transbordava de afeto. O rumor de seu passo no corredor botava o meu mundo em ordem. Sua risada era aberta e franca, seu abraço era cálido, sua alegria, generosa. Tinha momentos de melancolia, em que fitava um ponto distante longo tempo sem falar. Seu amor pela família foi talvez seu traço mais marcante. Ensinou-me o nome das árvores do jardim e os cuidados com elas, para que dessem frutas doces. Transmitiu-me a noção do sagrado das coisas e das pessoas. Gostava de tranqüilidade, meu pai Arthur. Recusou sistematicamente os convites para deixar nossa pequena cidade e assumir cargos importantes. Era atento e compreensivo, ajudou fugitivos da II Guerra, levava cobertores ou remédio aos pobres, aconselhava amigos e desconhecidos que vinham lhe pedir orientação. Lembro-me do que relatou alguém que o procurou em casa, e ele, interrogado sobre sua vasta biblioteca, apontou os livros e disse com simplicidade: "Eles são meus amigos".

Era também exigente, meu pai Arthur. Aborrecia-se com meu boletim invariavelmente medíocre, porque eu não gostava de estudar: queria ficar em casa, lendo em meu quarto ou debaixo de alguma árvore, e achava as regras de disciplina da escola antes cômicas do que respeitáveis. Além de negligente na escola, em casa não conseguia ser a menina prendada que minha mãe desejava.

Não podia competir com suas sobrinhas ou filhas de amigas, num tempo em que ser prendada era importante (para mim, era bobagem): meus bordados saíam tortos, minha incapacidade de arrumar a cama era patética, meu horror à cozinha era vergonhoso, eu respondia mal à minha mãe, ou lhe mostrava a língua. Era um desastre, e me sentia assim. Quando as queixas de mãe e professores se tornaram excessivas, ele me pôs num internato. "Para o seu bem", ele disse. Não esqueço a dor daquele dia e dos outros, nem a minha gratidão quando, dois meses depois, em uma visita, anunciei que se ele não me tirasse dali eu morreria, e ele me levou para casa. Por essa, e tantas outras coisas, dediquei-lhe especialmente um de meus livros, dizendo: "A meu pai Arthur, para quem eu não era só uma criança: eu era uma pessoa". Ainda falo com ele, recorro a ele em minhas aflições, pedindo que, como fez em vida, me ajude em minhas trapalhadas. (Não sei como, mas ele ajuda.)

Nele, antecipando o Dia dos Pais que se aproxima, homenageio todos os pais que não vão ter o carinho dos filhos pequenos ou adultos, nem um telefonema alegre, nem um almoço ruidoso, nem mesmo um recado. Homenageio os pais que ficarão sozinhos fingindo que não faz mal, que filho é assim mesmo, que a vida é assim. Não é assim. Em meu pai Arthur, homenageio os pais que não puderam estar sempre junto de seus filhos porque, longe, precisavam garantir o seu sustento; que foram relegados quando não tinham mais dinheiro ou saúde; criticados quando quiseram buscar alguma felicidade; ou que, sem entender, foram declarados dispensáveis e desimportantes.

Não posso esquecer aqui aqueles pais que perderam um filho ou filha, na dor que não se cura com nada. Mas penso também nos pais alegres, nos pais carinhosos, nos pais protetores, parceiros, guerreiros, nos pais que têm sorte, e que nesse dia especial receberão abraços, telefonemas, torpedos, churrascos, conversas, sorrisos ou mesmo um bilhete em letra infantil – como aqueles que tantas vezes, na minha distante infância, deixei no bolso do paletó ou no prato do café-da-manhã de meu pai Arthur.